AVENTURISMO – Eleazar de Carvalho:o devorador de partituras e a sinfonia da caatinga

AVENTURISMO – Eleazar de Carvalho:o devorador de partituras e a sinfonia da caatinga

Nesta aventura optamos por mostrar os contrastes da terra de Eleazar de Carvalho.

Nesta aventura optamos por mostrar os contrastes da terra de Eleazar de Carvalho.

É fim de tarde e o capitão do exército brasileiro que também era pastor presbiteriano entra em casa arrastando um menino de 11 anos pelo braço. Aos gritos ele chama pela mulher mestiça de brancos com índios tabajaras.

Rostos que trazem estampados os caminhos de muitas histórias

Assustada com o que vê ela indaga ao marido sobre o que estava acontecendo. O capitão responde em tom rude que “aquele menino não tinha jeito! Matá-lo de corretivo não daria certo e deixá-lo à solta seria perdê-lo. Melhor agora que ainda está mole e verde do que mais tarde quando estiver seco e torto. Vou mandá-lo para a Marinha.”

A mãe caiu em prantos, mas nada podia fazer. Naquele tempo mulher não tinha voz, quanto mais vez.

Assim o capitão Manuel Afonso de Carvalho mandou Dona Dalila Mendonça arrumar as trouxas do pequeno Eleazar de Carvalho que seria despachado de Iguatu para a Marinha.

Mal sabia o capitão Manuel Carvalho que estava sendo guiado como pastor a nos dar o maior maestro brasileiro de todos os tempos.

O ano é 1923, Iguatu, Sertão Central do Ceará.

O Exército já havia salvado o indisciplinado Luiz Gonzaga da morte e dado a ele as condições para que pudesse desenvolver seus talentos. Antes dele viera Eleazar de Carvalho que na Marinha encontrou sustento e educação. Antigamente a Marinha funcionava como uma escola interna que ensinava e preparava meninos bons e rebeldes para serem homens.

O menino inquieto era esfomeado demais. Eleazar descobriu que quem frequentava a banda de música tinha uma ‘boia’ melhor e para lá seguiu. Cinco anos depois, em 1928, já no Rio de Janeiro e aos 16 anos Eleazar de Carvalho já tocava na disputada banda dos Fuzileiros Navais da Marinha Brasileira. Um ano depois passou em concurso para a Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e teve que deixar a Marinha.

O mel da cana vira rapadura. Açucar quando falta o boi

Para sustentar-se passou a tocar em bailes na companhia de ninguém menos que Almirante, Donga e Pixinguinha os quais junto com ele faziam a banda American Jazz. Ao mesmo tempo tomava aulas de regência com Francisco Mignone na Escola de Música do Rio de Janeiro.

O talento do inquieto garoto iguatuense para a música encaminhava-o para a regência e em 11 de junho de 1939, aos 27 anos apenas, Eleazar compõe e rege a sua primeira obra – a ópera O Descobrimento do Brasil.

Aqui um aparte. Venho de uma família de grande veia musical, apesar de não tocar nenhum instrumento. Mas aprendi a amar a boa música, principalmente aquela que fala e te conta uma história apenas com a melodia – a chamada erudita. E como um apaixonado por sinfonias, óperas, adágios, minuetos, etc, não poderia permitir ensurdecer as letras, cegar parágrafos e deixar de reverenciar este ilustre brasileiro.

Como Eleazar de Carvalho nasceu e viveu a sua primeira infância no campo, eu e Jan Messias decidimos tentar reproduzir através das paisagens entre Iguatu e o município de Quixelô (anteriormente distrito de Iguatu) o ambiente que viveu, na sua infância, o maior maestro brasileiro de todos os tempos.

Pegamos nossas motos e fomos buscar na paisagem que até bem pouco tempo estava com mais de cinquenta tons de cinza, estéril e aparentemente sem jeito a transformação recente provocada pelas primeiras chuvas. Buscávamos nesta mesma paisagem algo semelhante ao que aconteceria com a vida de Eleazar de Carvalho ao ser lavado pelo orvalho da música que o seguiu para sempre.

1939 no Rio de Janeiro

Maestro Eleazar de Carvalho

Nesta mesma época chegava ao Brasil um dos maiores regentes mundiais – ninguém menos que Toscanini. Com ele vinha a Orquestra da NBC. O jovem Eleazar faminto por devorar novas partituras ficou encantado. Inquieto, como sempre o fora, saiu Rio de Janeiro adentro caçando músicos refugiados da Segunda Guerra Mundial para, junto com eles, compor a primeira formação da Orquestra Sinfônica Brasileira que seria regida pelo húngaro Szenkar. E quem era o assistente? Eleazar de Carvalho.

Eleazar esteve junto da Orquestra Sinfônica Brasileira até 1946 quando, finalmente, conseguiu junto ao Ministro João Alberto a possibilidade de ser apresentado à América!

A conquista da América

A inquietude, que beirava o desaforo e a sandice, fez com que Eleazar se apresentasse e se vendesse como “em perfeitas condições para reger as orquestras de Boston, Filadélfia e Nova York”. Muitas portas batidas depois eis que surge um convite para reger no não menos famoso Carnegie Hall. Acontece que desejavam vendê-lo como um índio e o cartaz o traria apresentado em trajes indígenas. Eleazar recusou e difícil de dobrar buscou conselhos e disseram-lhe que “para chegar a reger essas orquestras ele deveria ainda mudar-se para o Arizona e só depois de uns vinte anos retornar”.

A ponte de ferro marca de Iguatu, lugar por onde o pequeno Eleazar deixou sua terra

Teimoso e inteligente, Eleazar não levou o conselho a sério e decidiu continuar suas tentativas até que descobriu que Sergei Koussewitzky – um dos maiores nomes da música à época – era diretor de uma escola de regentes e estava ministrando cursos naquele momento em Tanglewood. E lá se foi Eleazar procurá-lo. Os cursos já estavam em andamento e por isso o maestro não aceitaria mais ninguém na turma.

Criativo e determinado ele conseguiu ser recebido com o argumento de ser portador de um recado do presidente do Brasil. Quando estava na frente de Koussewitzky, Eleazar lançou o desafio: “Peço-lhe cinco minutos à frente da orquestra. Se julgar que não tenho qualquer possibilidade volto ao Brasil e viverei da caça e da pesca”. Desafio aceito e após a apresentação Eleazar passou a ser assistente de Koussewitzky.

Em 1947, um ano depois de ter chegado à América, Eleazar junto com ninguém menos que Leonard Bernstein, regeu a Orquestra Sinfônica de Boston. O desaforo que estava engasgado na garganta de Eleazar precisava de troco. De sangue nordestino – e essa é uma característica do povo daqui – não poderia deixar de dar um corretivo em Ormandy (quem sabe seria ele o Salieri de Eleazar) – o mesmo que o havia aconselhado a estudar por mais 15 a 20 anos antes de pensar em reger uma das três maiores orquestras da América. O cearense abusado mandou um convite, com as entradas e uma cópia do cartaz para o soberbo conselheiro e no cartão estava escrito: “Veja onde estou!”

A infância do futuro maestro ainda hoje é vivida da mesma forma, com crianças livres e inquietas

Assim como a paisagem da caatinga teima em renovar-se sempre que é banhada pela chuva e frutifica rapidamente, e desafiando a forma como tudo neste Ceará conspira para não dar certo, Eleazar mais uma vez virou o jogo.

De Boston foi para Chicago e depois Nova York. Meses depois foi chamado para substituir Charles Munch que adoecera e, assim, acabou regendo a Philadelphia Symphony Orchestra, a mesma orquestra de Ormandy.

Em 1951, um ano após a morte de Koussewitzky, assumiu a cátedra de Regência do Berkshire Music Center a qual dirigiu durante 16 anos. Na mesma época, dirigiu a Saint Louis Symphony Orchestra onde ficou por 10 anos e onde regeu mais de 1000 concertos. Já consagrado como maestro, dirigiu a Pro Arte Symphony Orchestra em Nova York de 68 a 73. Seus objetivos foram alcançados. Mas faltava ainda algo para consagrá-lo como um ‘devorador de partituras’.

Não bastasse a grande responsabilidade como regente ainda foi professor na Washington University, Hofstra University, Tampa University, Juilliard School of Music e da Yale University, onde recebeu o título de Professor Emeritus.

Muitos dos seus alunos dirigiram e dirigem grandes orquestras pelo mundo, entre eles monstros sagrados da música reconhecidos e eternizados por conduzirem trilhas sonoras de filmes inesquecíveis. Nesta lista podemos citar Claudio Abbado, Zubin Metha, Seiji Osawa, Gustav Meier, David Wooldbridge, Harold Faberman e Charles Dutoit.

Ainda faltava o resto do mundo!

Maestro Eleazar de Carvalho à frente da Orquestra Philarmônica de Berlim

Maestro Eleazar de Carvalho à frente da Orquestra Philarmônica de Berlim

E não parou por aí. Eleazar de Carvalho, o devorador de partituras, queria mais e regeu as Filarmônicas de Berlim e de Viena e praticamente todas as grandes orquestras europeias em programas que incluíram peças brasileiras, principalmente as de Villa Lobos. Além disso, durante seis semanas, dirigiu a Filarmônica de Israel em sua primeira excursão aos Estados Unidos.

Sim, senhores! Aquele menino que chegou puxado pelo braço, inquieto, teimoso e guloso havia se transformado em um dos maiores regentes mundiais. Aquele mestiço de índio brasileiro com homem branco havia conquistado o mundo e dele recebeu a fama e o respeito dado apenas aos imortais.

Enfim, a volta ao Brasil…

Como todo bom nordestino, assim como Luiz Gonzaga, a grande sina é fazer o mundo para ver se “um dia descanso feliz, guardando recordações das terras onde passei…” e voltar ao seu país para ajudá-lo a crescer. Mas o Brasil não o recebeu com o mesmo glamour. Infelizmente aqui no Brasil, desde sempre, os nossos vultos são tratados como ‘qualquer um’ e Eleazar sofreu suas primeiras decepções, mas não se deixou abater.

Neste cenário de contrastes e mudanças bruscas foi onde formou-se a personalidade forte do maestro

Forjado desde criança na dura vida da caatinga e sendo ele um forte e também teimoso, partiu para seu mais novo desafio. Sente-se, respire, pois o que você lerá a seguir talvez não soubesse.  Foi a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo que havia sido fundada em 1954 e estava desativada. Sim, amigos! Desativada! A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo só ganhou vida e é o que é hoje graças a essa teimosia de um cearense, de um iguatuense genioso e que não tinha jeito, segundo o capitão Carvalho. A partir de junho de 1973 ela foi toda reorganizada por Eleazar de Carvalho e ela deveria ser já naquela época, o que é hoje – uma das melhores orquestras do mundo.

Mas não foi fácil, como nunca nada é fácil neste país que trata gênios como Eleazar de forma esnobe. A cultura, infelizmente não produz odores (numa analogia ao humorista Falcão onde dizia que a burgesia fedia mas tinha dinheiro para comprar perfume), apenas emoções.

Apesar dos seus esforços, na maioria das vezes não conseguia o apoio necessário e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo por várias vezes teve que tocar em espaços improvisados (a coisa do ‘meia-boca’ – o tal ‘jeitinho brasileiro’) e sem as melhores condições para a sua apresentação.

Aposentar a batuta? Nunca!

Quando chove a fartura é plena e de tudo que se planta na terra, há de colher um fruto doce e bonito

Já no final de sua vida, fraco e cansado, o velho devorador de partituras ainda teve energia suficiente para definir as diretrizes da reestruturação da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e conseguiu como último ato de sua brilhante trajetória reger o primeiro concerto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo na Estação Júlio Prestes.

Mesmo não tendo conseguido realizar o sonho de ver a orquestra numa sala à sua altura, o menino tinhoso e inquieto preparou o terreno para o que hoje temos no Brasil.

Eleazar de Carvalho é como esta paisagem retratada nas fotos de Jan Messias e Deyvid Nascimento (fotógrafo e aventurista de Quixelô, Ceará) – algo que teima em reviver sempre que um fio de esperança revestido de água cai na terra dura e difícil de domar, que teima em desconhecer limites e aceitar a sua condição de finita para se tornar algo em permanente transformação.

Eleazar de Carvalho trouxe consigo a determinação dos fortes que teimam em desafiar o contra e que brincam no fio de uma navalha, na lâmina do impossível, para mostrar ao mundo que dar errado é uma opção e não uma sentença. Ao mestre Eleazar de Carvalho, com carinho, reproduzimos em paisagens da caatinga, teimosa na sua lida, um pouco do que foi este grande maestro brasileiro. O maior de todos os tempos. Inesquecível mundo afora, mas pouco reverenciado em seu país.

Apesar disso, em um lugar, especificamente, o devorador de partituras é sempre lembrado – o Festival de Inverno de Campos do Jordão – local que é reduto também de todas as tribos de motociclistas, um dos templos sagrados para os amantes das duas rodas. Eleazar de Carvalho assumiu a coordenação musical do festival de inverno de Campos do Jordão em 1973 e nesta função ficou até a sua morte em 12 se setembro de 1996. O festival acontece até hoje durante todo o mês de julho e o nosso devorador de partituras sempre é lembrado.

Quando você estiver em Campos do Jordão, por ocasião do festival e ouvir este nome – Eleazar de Carvalho – vai lembrar que foi nas paisagens da caatinga que o maior devorador de partituras do Brasil recebeu a sua primeira forja, quem sabe foi esta a mais importante para que viesse a galgar os maiores patamares da música mundial.

Ao mestre Eleazar de Carvalho, com carinho, reproduzimos em paisagens da caatinga, teimosa na sua lida, um pouco do que foi este grande maestro brasileiro

Ao mestre Eleazar de Carvalho, com carinho, reproduzimos em paisagens da caatinga, teimosa na sua lida, um pouco do que foi este grande maestro brasileiro

 

SERVIÇO: Esta é a terceira matéria da série de 24 histórias sobre destinos inéditos do Ceará com apoio do Motonline, Make Safe, energético FAB, Havenna Hotel.

Onde se hospedar: Havenna Hotel – Av. Mal Castelo Branco, Nº 1222
Bairro: Esplanada – 88 3581-2488 – Iguatu – Ceará

http://www.havennahotel.com.br/havennahotel/

Onde ficam os lugares das fotos: Área rural de Iguatu e Quixelô, a poucos quilômetros das cidades.

Fonte: Texto de Luis Sucupira e fotos de Jan Messias e Deyvid Nascimento

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Redação Geral

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