MECÂNICA: Correia, cardã ou dente por dente? Qual o melhor sistema?
Há muito tempo utilizada e um padrão por referência, o sistema de transmissão final de grande parte (mais de 90%, talvez) das motocicletas que vemos nas ruas se utiliza do bom e velho kit de corrente, coroa e pinhão. Mas este é realmente o melhor sistema? Que características fizeram com que este sistema se popularizasse tanto? Que outras opções nós temos?
Diferente do que muitos imaginam, a forma como a potência de um motor
é convertida de energia química (combustão) à energia mecânica (rotação) não é linear, mas pulsante. A cada ciclo motor, em apenas um momento a força é produzida. Isto faz com que, no caso dos motores 4 tempos, uma explosão seja realizada a cada duas voltas do virabrequim.
Dependendo da motocicleta, considerando por exemplo a quinta marcha engatada, isto nos dá aproximadamente uma relação de 0,8 para 1, ou seja: a cada 1 volta do virabrequim, a roda traseira girará 1,25 vezes. Como temos uma explosão a cada 2 voltas do eixo de manivelas, a roda traseira só irá tracionar uma vez a cada 2 voltas e meia! Com esta consideração em mente podemos ter ideia do esforço suportado pelo sistema de transmissão, que deve transmitir esta força inconstante do motor à roda, aguentando a vibração inerente do vai e vem da tração.
Uma das maiores qualidades do aço é sem dúvida sua resistência em relação ao custo. Além disso, temos também a facilidade de trabalho, ou seja, de convertê-lo de um metal bruto (normalmente aço laminado) em uma peça acabada. A corrente de transmissão é formada por elos unidos por pinos, normalmente confeccionada em aço, e suas variações são a presença ou não de retentores, garantindo uma lubrificação mais duradoura e consequentemente estendendo sua vida útil.
Já o pinhão e a coroa podem ser confeccionados em aço, alumínio ou titânio (este último apenas para competição) e inúmeras variações em quantidade de dentes, favorecendo à mudanças de projeto ou mesmo um aumento da gama de utilização. Os mais comuns (e baratos) são em aço fundido. Para melhor performance há também os fabricados em metal laminado ou até mesmo forjado, e depois usinados e tratados termicamente. Todo este sistema (o famoso “kit de transmissão”) segue um padrão de tamanho, o chamado passo. O qual pode ser normalmente de 420, 428, 520 ou 525. Para que haja um intercâmbio correto, todas as peças do kit devem possuir o mesmo passo.
Por conta dos materiais utilizados, da facilidade de produção bem como da demanda (a maioria das motos usa), o sistema de transmissão por corrente possui um custo muito baixo, tanto de aquisição quanto de manutenção. Caso ocorram falhas ou problemas, é também o mais fácil de se consertar. Mas o excesso de simplicidade mecânica traz sérios efeitos colaterais a este sistema. Dentre eles a necessidade de manutenção frequente, com a limpeza, a lubrificação e o ajuste da folga gerada pelo desgaste. O ruído também é consequente, além da sujeira que o lubrificante costuma causar. E tudo isto contribui para a redução de sua vida útil, geralmente em torno de 20 a 30 mil quilômetros.
Sistema de Transmissão por corrente:
Prós
– Baixo custo de aquisição/reposição;
– Baixo custo de manutenção;
– Facilidade de manutenção;
– Facilidade de alteração da relação de transmissão;
– Fácil intercambialidade;
– Baixa perda mecânica;
– Alta performance.
Contras
– Necessidade de manutenção constante (lubrificação e ajuste da folga);
– Alto índice de ruído;
– Alto índice de sujeira;
– Baixa vida útil;
– Baixa resistência à água.
O sistema de transmissão por correia é muitíssimo similar ao de corrente, substituindo-se a corrente por uma correia, e o pinhão e a coroa por polias. As polias são bem simples, mas mais caras e difíceis de se produzir quando comparadas com uma coroa ou um pinhão. Já as correias são sempre fabricadas em borracha com uma malha interna, para conferir-lhes resistência à tração. Borracha esta de altíssima qualidade, gerando resistência à abrasão, elasticidade e durabilidade na medida certa.
As mais comuns utilizam fibras de vidro, aramida ou kevlar e já se encontram no mercado correias com fibra de carbono. Extremamente caras mas proporcionalmente mais resistentes. Há de se esclarecer que, nos sistemas de transmissão por correia utilizados nas motocicletas sempre se usa correia dentada, nunca as correias em V ou poli-V, comuns em automóveis e aplicações industriais.
A praticidade devido à quase inexistente necessidade de manutenção a torna muito bem vinda àqueles que não possuem muita “intimidade” com a moto. Em alguns modelos, como nas Buell, um esticador de corrente favorece à manutenções mais espaçadas. Devido ao desgaste natural da borracha, eventualmente pode haver acúmulo de um pó preto, mas em muito menor quantidade e bem mais fácil de limpar comparada à sujeira da graxa de corrente (já passou por isso, hein?!).
Possui alta eficiência, devido à baixa perda mecânica, mas sua incompatibilidade com altíssimas rotações (devido ao aquecimento excessivo nestas condições) faz com que não sejam comuns em competições, fazendo com que sejam frequentes em motos com muito torque, mas não tanta potência. Devido às propriedades da borracha, possui baixíssimo ruído em rodagem. Sua durabilidade (cerca de 80 mil km), faz com que seu custo-benefício deva ser repensado, pois agrada a muitos. O grande problema é quanto ao rompimento. Caso isto aconteça, a probabilidade é que o piloto tenha que voltar à pé…
Prós
– Elevada durabilidade (vida útil);
– Reduzido índice de sujeira;
– Reduzido índice de ruído;
– Leve, com baixa perda mecânica;
– Baixa necessidade de manutenção.
Contras
– Custo de aquisição intermediário (maior que a corrente, menor que o cardã);
– Não suporta rotações superelevadas;
– Risco de rompimento;
– Manutenção difícil (ou inexistente!)
E por fim temos o sistema de transmissão por eixo cardã. Muito utilizado por automóveis, o princípio do eixo cardã, apesar de simples, torna o sistema em motocicletas muito complexo devido ao volume e peso envolvidos. O eixo de saída do motor deve ter a direção de rotação alterada em relação aos outros dois sistemas. Enquanto com o uso de corrente ou polia o eixo de saída é transversal em relação ao chassis, no sistema por cardã o eixo encontra-se no sentido longitudinal. Por conta disso é comumente utilizado em motores com mesma montagem (longitudinal). Como consequência, há uma leve “puxada” para a lateral em acelerações mais fortes (efeito giroscópico).
Consiste de um eixo com engrenagens satélite nas pontas, passando internamente pela balança traseira, interligando o motor à uma engrenagem helicoidal unida à roda traseira. Como todo o sistema fica isolado e imerso em óleo lubrificante, a durabilidade do sistema torna-se imbatível, bem como a reduzida necessidade de manutenção (geralmente apenas troca de óleo a cada 10.000 km). Possui elevada eficiência na transmissão de torque, mas seu peso elevado o incapacita para uso em competições.
Devido ao elevadíssimo custo, só é utilizado em motocicletas de alta cilindrada. Uma característica interessante é que devido ao reforço do lado da balança em que o eixo passa, por projeto, sua escolha é comumente associada à balanças monobraço. Outro motivo é a facilidade de montagem e desmontagem no caso de um pneu furado. Uma montagem inadequada é fácil de acontecer e poderá danificar seriamente os dentes das engrenagens.
Prós
– Elevada robustez mecânica;
– elevada durabilidade (vida útil);
– Reduzido índice de ruído;
– Sujeira inexistente;
– Manutenção quase inexistente (apenas troca do lubrificante);
– Maior eficiência na transmissão do torque.
Contras
– Alta perda mecânica (rouba potência do motor);
– Eventual efeito giroscópico;
– Muito pesada;
– Custo de aquisição elevadíssimo;
– Exigência de técnica na troca do pneu.
Em resumo, acredito que ainda veremos por bastante tempo a corrente de transmissão “monopolizando” as ruas de todo o mundo, mas quem sabe num futuro próximo o uso da correia seja popularizado. Basta nos acostumarmos a ter sempre uma de reserva guardada! Ou deixar de vez os estigmas de lado e substituir com total confiança a manutenção corretiva pela preventiva.
SAMUEL PIMENTA é engenheiro mecânico formado pela UFC, MBA em Gestão de Projetos pela FIC e MBA em Gestão da Qualidade e Engenharia de Produção pelo IPOG. Mais de 10 anos de experiência com Produção, Projetos e Manutenção em indústrias de grande porte. Especialista em implantação do sistema Lean Manufacturing. Professor de tecnologias industriais. Consultor Industrial. Engenheiro de Desenvolvimento de Produtos da Moto Traxx da Amazônia. Engenheiro por vocação, motociclista de coração.