Minha vida numa moto: 2005, uma viagem solo de Fortaleza à Salvador

Outubro de 2004 – A preparação da  viagem solo.

O primeiro passo foi escolher o trajeto, mas antes disso precisava conhecer a moto em todos os aspectos: pilotagem, mecânica e limites. Neste último ponto repousa o mais importante. Decidi pela rota Fortaleza – Salvador por ser uma rota com alternância de trechos longos e curtos, com estradas movimentadas e trechos desertos, bons pontos de apoio e pontos sem apoio nenhum, segura em alguns trecos e horários e insegura quanto a assaltos em outros trechos e anda por ser um desafio de médio porte em se tratando de realizá-la solitariamente numa moto de baixa cilindrada. Seriam 3.400 quilômetros de aprendizagem, emoção, liberdade, disciplina e determinação. Fiz um curso de mecânico profissional, ainda em São Paulo, pois morava lá e havia retornado a pedido da empresa havia uns três meses. Consegui o manual de serviços da moto, uma Mirage 250cc fabricada pela Hyosung e montada no Brasil pela Kasinski a qual personalizei como uma Harley. O manual de serviços é aquele que os mecânicos usam para se orientar quanto a defeitos, reparos, sintomas, regulagens e calibrações.

Passo seguinte foi treinar em trechos curtos de até 250km nos trechos de ida. Estes treinos ajudaram a posicionar melhor a coluna, aprender a se defender de trânsito pesado e dos ventos laterais e frontais, deslocamentos de ar provocados pela passagens de carros pesados, chuva, descobrir horários bons e os ruins, praticar a média horária, autonomia, equipamentos de segurança e ferramental, inclusive peças.

A outra etapa estava relacionada a disciplina. Essa parte estava ligada a horários e limites para sair, desenvolver, evitar e parar. Cada etapa desta é muito importante para se atingir os objetivos. Junto com isso precisava relacionar as peças de reserva, kit de primeiros socorros e vestuário adequado. Teria que escolher a tática certa para a estratégia estabelecida.

Passada a fase de preparação, passei ao segundo passo que foi estudar detalhadamente a estrada e os trechos para definir quando e onde parar.Pesquisas e informações, mapas, meteorologia confiável com previsão segura para 5 dias e incluir no trecho horas de parada e um ponto alternativo de pernoite  caso uma pane levasse mais que três horas para ser resolvida, pois uma premissa seria não rodar à noite. Se isso fosse necessário o faria em último caso mas apenas para chegar a um lugar seguro.

Não cair. Não forçar o equipamento. Não exagerar e não esquecer a disciplina. Não acidentar-se e acima de tudo chegar vivo e inteiro, tanto eu quanto a moto e no prazo estabelecido. Era importante lembrar sempre que estava só e que contava apenas comigo mesmo e com Deus, pois qualquer outra ajuda poderia ser perigosa de aceitar e se aceitasse e tudo desse certo seria contar com o fator sorte. Como sorte é a soma de preparação com oportunidade, estaria tranquilo se fizesse a minha parte.

Pode parecer estranho, mas o motociclismo, mesmo em grupo, é um esporte solitário. Ainda que viaje com uma garupa, quase nenhum diálogo é trocado fora do estritamente essencial. É olhar e curtir sem perder a atenção e a concentração. Costumo dizer que não existe prazer sem proteção e a liberdade impõe limites e a aventura nada mais é do que escolher um objetivo, traçar metas e chegar no prazo acertado. Parece irresponsabilidade, mas a verdadeira aventura é totalmente formatada na responsabilidade do esportista, no controle e na visão de que cada etapa alcançada nos conduz ao objetivo final.

Depois de estudado o mapa e avaliado os trechos, o próximo movimento seria definir os pontos de parada. Defini que seria possível andar por 8 ou nove horas seguidas para cobrir trechos de 700km diariamente.

A minha planilha diária de rotinas estava dividida da seguinte forma:

Dormir às 21:30
Acordar às 4:30 da madrugada.
60 minutos para higiene pessoal e café da manhã.
30 minutos para arrumar a bagagem, conferir vazamentos, estado dos pneus, freios, óleo de freio e motor e possíveis falhas.
30 minutos para abastecer a moto e pegar dinheiro se precisar.
30 minutos para estar saindo da região metropolitana da cidade e assim evitar o trânsito pesado.

Na chegada:

60 minutos para estacionar a moto em local seguro, descarregar a bagagem e descansar para baixar a adrenalina e sentar as idéias.
60 minutos para lavar e revisar a moto. Conferir parafusos, estado geral da máquina,  reapertos necessários de braçadeiras, porcas e parafusos. Verificar vazamentos e estado dos pneus.
Mais 60 minutos para higiene pessoal e um bom jantar.
Até as 21:30hs aproveitar para confirmar a meteorologia e conferir o estado da estrada do dia seguinte conversando com pessoas que estavam em trânsito no sentido contrário ao meu.
Passar uma mensagem para os amigos da lista informando um breve resumo do dia.
Dormir bem e acordar no horário. Não esquecer que amanhã tem mais 08 ou 09 horas de viagem.

Sábado, 29 de janeiro de 2005 – Começou a viagem!


Não posso negar que a ansiedade não me deixou dormir na noite véspera do primeiro dia de viagem. A excitação era grande e eu não conseguia imaginar outra coisa a não ser estar na estrada. Misturada a essa sensação estava a checagem de cada ponto, de cada cuidado e de cada ação.

Levantei na hora certa. Arrumei a moto e decidi não tomar o café em casa mas no posto. Acreditava que se saísse de casa logo e estivesse num posto estaria mais calmo e a ansiedade já não seria tão grande. Deu certo! Tomei meu café da manhã no posto. Enquanto abastecia a moto eu conferia todo equipamento e todos os itens de segurança. Ajustava mapas e cronômetros e zerava o odômetro. Elaborava as mensagens para serem enviadas via celular/SMS para a lista de pessoas que iriam monitorar a viagem.

Enquanto tomava café relembrei todas as etapas que havia passado, tudo o que foi planejado, todos os detalhes. Era a hora da verdade! Ainda dava pra desistir, mas eu não pensava nisso. Subi na moto, fiz uma oração, dei a partida e o motor falou alto como que pedindo também para chegar logo na estrada. Preparei a primeira mensagem e disparei. Eram 07 e 30 horas da manhã de sábado do dia 29 de janeiro de 2005. Um belo dia. Calmo. Boa parte da cidade ainda dormia e eu sabia que com certeza boa parte dos colegas que estavam na lista de torpedos também. Bom, iria acordá-los, mas assim foi pedido. Torpedo enviado. Em seguida recebo a confirmação de entrega das mensagens passo a primeira e …. estrada!

No começo andei com um cuidado exagerado, na ponta dos dedos e das botas, pois a ansiedade poderia estragar tudo. Deveria prestar atenção na moto, no seu desempenho, na estrada e na meteorologia. Começar o dia lambuzado de chuva não é nada agradável.

Saio da cidade e pego a CE 040. Pista dupla, tranqüila. Esta é um das avenidas de Fortaleza que mais têm acidentes graves. No caminho ia me perguntando quantos carros ficaram em postes da noite de sexta para sábado. Apostei em três. Para minha felicidade eu errara. Apenas um havia acertado sozinho um poste e pela batida nada mais grave, apenas prejuízos materiais.

Passei a Prainha, Iguape, Cascavel, Beberibe, Parajuru, Fortim e Aracati. Neste momento decidi que não ia parar para abastecer e iria tentar chegar com o mesmo tanque em Mossoró no Rio Grande do Norte. Seriam 260km. Se meus cálculos estivessem certos, chegaria lá quase na reserva. Ainda era cedo. Na estrada, perto de Parajuru peguei 1km de chuva isolada. Aquela chuvinha chata, localizada que cai num só ponto da estrada. Passei de Aracati e caminhei rumo a Mossoró. Quando vejo a placa que informa a divisa do Ceará com o Rio Grande do Norte senti que a viagem estava começando e que daquele ponto em diante meu planejamento tinha que funcionar. Havia acabado de passar da entrada de Icapui e alguns quilômetros adiante já estava no Rio Grande do Norte. O asfalto mudou. Era mais claro e mais parecia com concreto. Olhei no mapa de navegação e ele me dizia que faltavam cerca de 50km para chegar a Mossoró. Olhei o marcador de combustível e ele havia baixado bastante. Conferi o odômetro. Estava certo, mas eu não sabia quanto de gasolina realmente havia dentro do tanque. Primeiro susto: será que errei a autonomia da moto? Será que estava consumindo muito? Olhei à frente e no mapa em busca de um posto de gasolina, mas só haveria um em Mossoró. Decidi relaxar e confiar na minha conta e no meu planejamento. Havia feito e refeito aqueles cálculos várias vezes e conhecia a máquina. Era uma outra hora da verdade. E mais: se chegasse na reserva daria para ficar em pane seca já dentro de Mossoró. Toca pra frente!. Um retão e  algumas cruzes na estrada mostravam que o sono e os animais haviam levado algumas pessoas para outra vida. Olho no mato alto e em qualquer movimentação estranha que pudesse parecer com animais na pista. Lá na frente uma curva…. estava louco para encontrar uma placa de sinalização para confirmar quantos quilômetros faltavam. Feita a curva descortina-se o anel de contorno com as Placas dizendo Mossoró a 10km e ainda saídas para Tibau, Areia Branca e Grossos. Não me contive. Olhei o odômetro e reconferi meus cálculos. Estavam certos! Podia mesmo confiar! No posto escolhido parei. Desci, me hidratei, usei o banheiro e comi uma barra de chocolate e tomei um Night Power para estimular um pouco mais. Conferi a moto. Estava tudo ok. Abasteci e refiz os cálculos. Precisaria reabastecer em Açu para poder chegar com segurança a Natal. Seriam quase 290km de estrada.

Antes de sair percebi que uma patrulha da polícia passou pelo posto e como a minha jaqueta camuflada com insígnias da II Guerra e a moto chamaram a atenção resolveram parar lá na frente. O sargento da patrulha atravessou o posto e bem simpático perguntou se era militar. Disse que não. Ele me disse que não deveria utilizar aquela jaqueta pois o pessoal ali não gostava de militar e eu poderia ser agredido. Agradeci e disse a ele que iria tomar cuidado mas que não iria tirar minha jaqueta. Perguntou se iria pernoitar na cidade. Disse que não. Neste momento notei que outra viatura chegara. De longe percebi que falavam de mim. Não dei bola e continuei a tocar o que estava fazendo. Quando percebeu que eu, apesar de simpático, não esticava muito a conversa resolveu despedir-se e foi embora. Antes perguntou se queria escolta até fora da cidade. Disse que não. Agradeci. Enviei as mensagens para o grupo, abasteci e fui embora. Tinha mais 290km para rodar e um calor infernal pela frente. Já eram cerca de 10 horas da manhã.


Sábado, 29 de janeiro de 2005 – Mossoró – Natal: a nossa Rota 66.

Qualquer semelhança com a famosa e lendária Rota 66 dos Estados Unidos, não é mera coincidência! È isso mesmo! Este trecho é um teste para qualquer piloto de moto. A temperatura ambiente em dias claros, de vento e calor oscila entre 34 e 38 graus. Some-se a isso a temperatura do corpo recoberto pelas proteções e mais a temperatura do asfalto que chega a 54 graus ao meio-dia… pronto! Você está na recepção do que poderia ser o Inferno. Num carro nada disso é percebido, pois você viaja protegido pela lataria, teto(sombra) e pelo ar condicionado(se tiver um). Mas esse é o princípio do motociclismo: controlar as variáveis e seguir. Adaptar-se rapidamente, sentir o tempo, o vento e o clima… prever, corrigir. Saber andar e parar. São 290km de asfalto ondulado, mato as vezes alto, muito calor e vários caminhões no sentido contrário. O vento, na ida, é sempre contra, como que teimando em dizer a você que prosseguir é coisa de corajosos, guerreiros… de Guerreiros do Sol!

Os caminhões passam e atrás deles um vento que te joga pra trás. Um só chacoalhado desses até que ajuda a acordar e a subir a adrenalina, mas quando passam três, levar tanta porrada de vento, enche o saco! Mas existe um macete! Lembra como se faz para se livrar das ondas do mar quando você resolve entrar além da arrebentação? È a mesma coisa. Basta abaixar a cabeça e passar por baixo da onda. Isso mesmo. O vento vem como uma onda que você não vê, ai você se abaixa e ele passa por cima. Isso! Basta fazer isso e o efeito acaba.

Mas voltemos a estrada. Como disse, a autonomia da moto não garantia chegar até Natal sem entrar na reserva. Mandava meu planejamento reservar quatro litros para as emergências, pois não tinha espaço para levar dois litros de gasolina de reserva na moto. Pela média por quilômetro rodado, cerca de 25 km por litro, daria pra chegar ‘no cheiro’, como dizem, mas a precaução manda ter pelo menos 100km de reserva em autonomia. Dois litros no principal e mais dois na reserva. Por conta disso precisaria abastecer em Açu, que fica a 70km de Mossoró.

Dizer que motos parecem com aviões, em alguns aspectos, não é exagero de paixão. É verdade! Autonomia e reserva são fundamentais e esse é um dos princípios da aviação além do princípio da redundância. Encher o tanque e usar dois terços ou a metade sempre. Foi por ai que eu fui e não errei mesmo quando vi o ponteiro baixar muito.

Em açu parei para abastecer na bandeira do posto Ipiranga, mas alguns quilômetros depois percebi que a moto perdeu rendimento e em algumas vezes falhou. “-Gasolina suja!” Pensei. Mas era mais que isso. Misturada e talvez batizada. Ai começou a minha dor de cabeça: rodar pra ver o que acontecia. Estava depois de Lages, entre o nada e lugar nenhum. Tinha que equalizar a máquina e reequilibrar a mistura. Menos rica em ar e mais em combustível para evitar superaquecimento e falhas. Regulagem feita, em seguida me toquei que o ajuste reduziria a minha autonomia, mas eu não sabia em quanto. Recalculei de cabeça para 19km por litro e assim estaria em Natal na reserva. Errei dois quilômetros. Cheguei em Natal quase na reserva. Baixei toda a gasolina batizada e adicionei um aditivo Bardhall laranja junto com a nova gasolina. BINGO! Acertei! O curso de mecânico e de pilotagem ajudou muito. Posso dizer: se pagou. A moto voltou ao normal depois de alguns quilômetros. Belo motor! Na parada, conheci, no posto, um casal simpático: senhor e senhora Jorge Blanco, um argentino que mora em Natal e que possui uma Harley-Davidson. Conversamos por meia-hora, trocamos cartões e depois partir.

A estrada para João Pessoa, na Paraíba é um tapete! O vento já não era frontal, mas lateral, mas suave. Muitas subidas e descidas, pista dupla para ultrapassagem, mas um trecho tranqüilo, mais fresco e menos Rota 66. O visual é belíssimo, verde, limpo e com cheiro do mato e de cana de açúcar. Muito comércio na estrada. Artesanato, frutas, comidas e bebidas. Vendem de tudo. Da carne seca, passando pelo carneiro, indo até as frutas frescas e uma deliciosa água de coco. Mas não podia parar para apreciar isso. Tinha um prazo a cumprir, por opção minha. 180km depois vejo a placa : João Pessoa a 30km. SHOW! Ia poder descansar e descer da moto. A bunda doía por conta dos pêlos que estavam sendo arrancados à força pelo atrito com a cela e pela posição, mas nada tirava a vontade de poder rodar 700 km num dia, numa moto. Uma coisa que fiz foi usar para amaciar um par de luvas Lúmica. Queria amaciar o couro. Quando cheguei em João Pessoa, a ponta dos meus dedos doía como se as minhas unhas tivesse sido machucadas, parecia que elas iam entrar na carne de volta, pela cabeça dos dedos. Mas as luvas estavam amaciadas. “-Amanhã seriam mais confortáveis.” Esperava eu. Cheguei em João Pessoa. Aproveitei para curtir o sol e ver a orla da cidade que escolhi para morar. LINDA! GOSTOSA! A cidade dos meus sonhos!

Fiquei hospedado na Pousada do Caju. Muito boa e acostumada a receber motociclistas. O tratamento é diferenciado pois a moto fica quase dentro do quarto. Moto guardada, bagagem tirada, cerveja aberta. Hora de avisar a todos da lista, via torpedo, que cheguei inteiro e em paz e na hora. Eram 15:30 horas.

Cumpri a disciplina de chegada. Conferi tudo, lavei a moto, chequei todos os parafusos, lubrifiquei e fui ao banho. Que banho! Quase não consegui sair. Jantei como um rei, pois almocei como um pobre – só barras de cereais e chocolate. Comer na estrada dá sono e transfere sangue para o estômago e diminui reflexos. Barras de cereais e chocolate ajudam a não perder a concentração. A velha Coca-Cola também ajuda bastante, mas o que não deve faltar, em cada parada é uma boa garrafa de água mineral com gás. Por que com gas? Refresca e hidrata demoradamente além de retardar a vontade de urinar. Outra proteção e garantir-se contra o reenvasamento da água. Alguns postos têm o hábito de preencher a garrafa e não se sabe a procedência. E mesmo que não seja verdade não vale a pena correr o riso. Tome refrigerante e água mineral com gás, mesmo que não goste. É para sua proteção. Andar de moto com dor de barriga é o fim!

Avaliei o trecho e me dei uma nota. 10! Tudo certo. Tuda a avaliação e soluções aplicadas foram corretas, tanto em pilotagem quanto em mecânica.

Liguei a TV. O sono bateu forte. Programei o celular como despertador e apaguei! Amanhã tinha mais 700 km para vencer. E mais uma vez sozinho!.


30 de janeiro de 2005 João Pessoa a Aracaju:
Beleza e perigo num dia de domingo.

Amanhece o dia. Toca o despertador. Me levanto e faço os alongamentos. A mão já não dói e a bunda nem tanto, mas tenho que cumprir meu trajeto. Mais 700km até Aracaju pela trilha do mar, passando pela travessia de balsa entre Penedo, Al e Neópolis-Se. Meu objetivo é atravessar a Paraíba, Pernambuco, Alagoas e a metade de Sergipe até Aracajú. Canaviais, treminhões e ventos de toda ordem. Mas as paisagens deslumbrantes me esperam. Como dizem, de carro você compõe e passa pela paisagem. Numa moto, você é a paisagem. Então, mão no acelerador e ESTRADA!

Antes precisava consertar um curto. O fusível da moto queimou e fiquei no escuro ou pior: apagado. Uma ligação para o Jacó, mecânico e o problema foi resolvido à noite anterior mesmo. Mais não podia viajar sem um fusível de reserva. Mas como achar uma loja de moto aberta às 7 e 30 da manhã de um domingo em João Pessoa? Bom. Me deram a dica que perto da rodoviária encontraria uma. Fui. Não tinha outra alternativa. No caminho encontrei um oficina. Mistura de ferro velho com oficina, parei e procurei encontrar o fusível que precisava para reserva.

Uma coisa interessante é que, geralmente, mecânico de carro não entende de moto e vice-versa. Mas a semelhante não é distante. Perguntei a ele onde tinha uma sucata que possuía a caixa de fusíveis intacta. Ele me mostrou um Chevette 1981. Este Chevette já vinha equipado com os fusíveis de chapinha diferenciados em cor. Bastou mexer lá e uns cinco reais e eu tinha mais 5 fusíveis de reserva. Na dúvida, pois não sabia a causa ainda, coloquei um fusível de 20 ampéres. Liguei a moto, testei os faróis e fui! Já eram quase 9 horas da manhã.

Este seria o dia que me daria nota 7 pelo desempenho. Este foi o dia em que aprendi que excesso de confiança e afobação podem colocar tudo a perder. Aprendi e reaprendi o autocontrole.

De João Pessoa á Recife é um passeio. São menos de 110 km de estrada e que pela hora que escolhi e o dia da semana, estava tudo tranqüilo. Mas a tranqüilidade acaba quando se chega no anel viário de Recife. Perdi, mesmo sem errar o caminho e as conexões de pista cerca de 40 minutos até sair realmente da cidade e entrar na litorânea que passa pela entrada para Porto de Galinhas.

Trânsito pesado, muitos caminhões e muitos carros de passeio com destino à praia. Mais tempo perdido. O calor já começava a incomodar. Resolvi parar para dar um tempo. Bebi água, lanchei uma barrinha de cereal, abasteci e estrada! Depois que saí da zona de Porto de Galinhas segui rumo a São José da Coroa Grande, ainda em PE. Esse seria o ponto que saberia estar mais perto de 
Maceió,Al. Até lá a estrada é um tapete, cheia de curva, o que motociclista adora e pouco trânsito. Até os treminhões(caminhões com duas carretas próprios para levar cana) estavam de folga. Vi apenas uns cinco, quando o normal seria ter que ultrapassar uns 20 ou mais. A cana estava em boa parte colhida.
Veja a direção do vento pelo coqueiro!A tranquilidade que senti com a falta dos treminhões e do trânsito pesado, mesmo com pista limpa, outro problema tão ruim apareceu e durou por muitos trechos da estrada: o vento lateral que corria livre agora que a cana-de-açucar havia sido colhida. Pancada da direita e da esquerda. Vento transversal à esquerda e à direita, em diagonal e as vezes as porradas do deslocamento de ar provocados pelos caminhões e ônibus. Tava na medida pra cansar. Já havia tomado um susto quando me deslumbrei com a paisagem e cai na bobagem de dar uma espiadinha. Segundos que o olhar desviou foram suficientes para me fazer ir ao acostamento, que tinha buracos e ainda era um curva bem aberta. Andei pelo acostamento uns cinquenta metros até que consegui encontrar um ponto de saída pra voltar à estrada. Que susto! Dei um tempo e segui novamente. Dessa vez só iria olhar em retas e sempre à frente.

Chego a São José da Coroa Grande, em PE. Alguns quilômetros depois seria Alagoas. Era um domingo de sol maravilhoso, um dia lindo e um banho de mar seria tudo que precisava naquela hora quente.


A estrada à beira-mar!

Abasteci novamente, almocei uma meia barra de chocolate. Àgua mineral, revisão rápida da moto: parafusos, porcas, vazamentos, folgas, pneus etc. Pronto! Hora de ir. As costas não doíam e nem doeram, a cinta abdominal elimina as posturas erradas, mas a bunda… essa começou a incomodar. Uma paradinha e tudo melhorava.

Estrada de novo. Até Maceió mais 115 km. No caminho não resisti às belíssimas paisagens de Alagoas. Ia sempre vendo o mar e ele estava maravilhosamente pintado de azul quase emendando com o céu de tão limpo! Parei na estrada e fiz umas duas fotos. Demais!

Voltei ao acelerador e em pouco tempo estava entrando em Maceió. Atravessei a orla quase toda. Não precisa dizer que chamei muita atenção por conta da forma que eu estava vestido para um dia de domingo ensolarado e quente. Todo mundo de bermuda e sem camisa, biquinis de todas as cores, cerveja gelada  e aquele maluco(eu) na moto todo vestido passando pela orla numa moto que parece ter saído de um filme americano. Mais na frente um desvio. Aos domingos parte da orla é fechada para lazer. Peguei outro caminho e segui para a praia do Francês. De lá seriam mais 144 quilômetros que iriam demorar ainda um bom tempo. Na saída do trânsito engarrafado para a praia do Francês um outro susto. Um maluco distraiu-se e freiou bruscamente na minha frente. Estava bem próximo do acostamento, que dessa vez era de boa qualidade. Rapidamente decidi ir prá lá para dar espaço de frenagem para o veículo que vinha atrás de mim. Deu certo. O carro detrás parou bem perto do outro e eu me sai bem pelo acostamento. Depois, gentilmente o motorista do carro que estava atrás de mim freiou e me deu a entrada da pista novamente. Agradeci. Ele fez um sinal típico dos motociclistas com a mão parcialmente fechada e apenas os dedos indicador e mindinho abertos. Agradeci repetindo o mesmo gesto e fui.

Este trecho da estrada é muito bonito, mas é o mais solitário de todos. Muitas curvas, muito vento e morro pelado e sem-terra acampados na estrada. Alguns quilômetros adiante outro susto: numa curva toquei de leve o mata-cachorro. Briguei comigo. Chamei minha atenção pesadamente por baixo do capacete cobrando atenção e menos afobação. Segui rumo a Penedo, Al. Lá ia pegar uma balsa e atravessar o Velho Chico. No caminho ainda tive tempo para relembrar outra coisa importante: ler a copa das árvores e tomar cuidado com os descampados.

Os maiores inimigos do motociclista de estrada são o vento, o excesso de confiança, óleo na pista e a chuva forte e principalmente no início. Mas, talvez, o pior de todos seja mesmo a lufada surpresa de uma rajada de vento. É igual a escorregar no óleo. Não tem saída: é chão certo. É o chamado tombo bobo comum de acontecer em entradas de postos onde transitam muitos veículos pesados. Atenção nas copas e no chão. Manchas escuras na pista devem ser evitadas a todo custo. Outra coisa a se observar são as copas das árvores, principalmente quando, você, está entrando naqueles morros cortados pela estrada. O vento faz um cano e hora sobe e hora desce e as vezes faz um redemoinho bem no meio. A hora que você trafega também pesa pra piorar o efeito. Eram umas 14 horas e vento estava a mil. Interessante foi ver na prática uma dica de viagem. Ao entrar num morro cortado pela estrada o vento jogou para o centro da pista para o lado oposto. Depois que corrigi o vento agora, ainda dentro do morro, me jogou para fora. Olhei para a copa de um coqueiro e ele me avisava pela direção das palhas, como um biruta de aeroporto, de onde vinha o vento: contrário à tangente da curva que era para esquerda descendo. Diminuí a marcha e entrei na curva um pouco abaixado com a velocidade que achei mais segura. Deu certo. Livrei a pancada do vento que quase não senti a não ser pela sensação de frescor que ele trazia.

Alguns quilômetros adiante  vejo umas das mais bonitas paisagens da minha vida: o Mirante da Praia do Gunga. Parei. Tinham muitos carros parados fazendo a mesma coisa: apreciando. Resolvi ficar uns minutos a mais engrossando o grupo que deleitava-se com aquela pintura que só Deus poderia fazer. Bati uma fotos, tomei bastante água e voltei a estrada. Mais adiante cheguei a Penedo, Al. Posicionei a moto na fila pra Balsa e esperei tomando um refrigerante bem gelado e comendo a última barra de chocolate do dia, pois o que levava era apenas uma reserva de emergência. O São Francisco é realmente soberano e acreditam alguns que seja o ‘coração do Brasil’. Depois do que vi penso que seja mesmo. Me perguntei: por que não transpor 1% dessa água que vai para o mar, inevitavelmente, para matar a sede e a fome do Polígono das Secas? Muita maldade e egoísmo. Se eu tinha alguma dúvida sobre a transposição, a partir daquele momento, era só certeza.


A balsa chegou. Entram primeiro os carros depois as motos e as bicicletas. Somos os últimos a entrar e os primeiros a sair. Na balsa tomei uma água de coco e puder ver o sol se armar avisando o início do fim da tarde. Dei adeus a Penêdo  e fui no sentido de Sergipe. Estava perto de Aracaju.

Saindo da balsa segui até a BR 101. Confesso que esse não era o horário que gostaria de pegar essa estrada. Muita gente voltando das praias e sítios, fim de domingo…. bebedeira, imprudência. Bom, agora a atenção seria total. Já perto de Aracaju, na BR 101 encontrei um pessoal meio maluco andando de moto. Eram as famosas CGs e os pirados estavam andando deitados no tanque a mais ou menos uns 120km por hora. Só se ouvia um o som semelhante a um carro de autorama em alta velocidade a passar por você. Ziiiiimmmimimim….. lá se vai outra. Deus os proteja e a mim também. Pensei. Chegando em Aracaju, bem na entrada um engarrafamento por conta de um entroncamento que nunca ficou pronto. Dois sustos. Um freio brusco, quase uma batida de dois carros que poderia se transformar num engavetamento de três ou mais. Fui pelo acostamento seguindo um grupo de motos speed. Sai rapidamente dali, mas descuidei da altura do asfalto e bati mais uma vez o mata-cachorro na borda do asfalto que de tão ondulado, parecia um degrau para quem vinha do acostamento. Já nem me zanguei mais comigo, apenas tirei mais um ponto da minha nota de desempenho diário que costumo me dar para cada trecho. De oito cai para sete e iria me manter ai até chegar ao hotel. O mata-cachorro suportou bem. Não amassou.

Cheguei no hotel às dezoito horas em ponto. Umas duas horas atrasado. Atraso que computei ao trânsito em Recife e em Maceió e parte de Aracaju. Muito carro, muita gente na praia e não era para menos, pois era um indo domingo de sol.

Lavei a moto, mandei as últimas mensagens e fui lavar a moto. Bati dois sanduíches e passei uma hora no banho. Conferi a meteorologia e revisei mentalmente as besteiras do dia e os acertos. Sete! Essa seria a nota que iria levar. Merecia. Orei e agradeci a Deus por tudo e pelas lições e fui dormir depois de ligar o melhor sonífero: a tv. Logo em seguida cai em sono profundo.

Segunda-feira, 31 de janeiro de 2005 – Aracaju a  Salvador pela Linha Verde
Um posto longe demais!

Pela manhã depois de tudo arrumado e de café tomado fui pegar dinheiro no shopping. Abasteci e ainda no trecho urbano fazia minhas orações e relembrava os sustos e disse a mim mesmo: Vou tirar um dez hoje! E foi isso que aconteceu.

Calculei a autonomia e saí em direção a linha verde. Fiz questão de pegar um horário que não tinha muito tráfego na estrada pois iria percorrer uns setenta quilômetros na BR 101 até sair para Linha Verde. A estrada estava toda boa em todos os trechos que peguei de BR, fato esse que se confirmaria na viagem de volta. Nenhum buraco. Apenas alguns que encontrei na parte mais chata da viagem que é no entroncamento de Recife para João Pessoa antes de sair para Abreu e Lima. A litorânea é perfeita e linda.   Entrei na Linha Verde e vi a placa “Bem-Vindo à Bahia”. Já fui muitas vezes à Terra de Todos os Santos a trabalho e a passeio e não me canso de dizer que lá se somam todas as diferenças que em outros lugares produziriam a intolerância e o preconceito. Mas na Bahia o profano e o sagrado são vizinhos, se cruzam e festejam juntos numa das maiores lições de tolerância que já vi na vida. Não é a toa que o carnaval de Salvador é a maior festa popular do mundo, registrada no Guiness Book. Cerca de três milhões de pessoas em alguns quilômetros quadrados, uma média de 3 pessoas por metro quadrado, mais de setenta trios de todas as tribos, dois circuitos e uma disposição enorme para a festa. O comércio no carnaval se transforma. Lojas de roupa, cursos de inglês, sorveterias… tudo vira bar e camarote por onde passam os trios. Sejam pelo circuito Barra-Ondina ou pelo circuito Campo Grande tudo vira bar e camarote. Patrimônios históricos protegidos por tapumes e cercas. Tudo alegria, organizado e muito profissional. Um grande negócio sob todos os aspectos e na Bahia, pasmem vocês, eu vi e pude atestar, o carnaval é levado muito à sério. Quem pensa que aquela festa toda é uma junção de todas as irresponsabilidades e descuidos vai queimar a língua. Baiano gosta sim de trabalhar e de muito trabalho pois organizar a maior festa de rua do mundo dá, sim, muito trabalho. Tudo muito organizado, bem policiado. Digo isso por que tive a oportunidade de conhecer através de meu irmão Jorge Mesquita e sua guerreira esposa Selma e de Telminha a festa de rua mais organizada que eu pude participar. Acompanhei o carnaval de vários ângulos e aspectos. Estive de passagem na pipoca do Chiclete com Banana. Gente… e ainda dizem que ir de Fortaleza a Savador sozinho numa moto é perigoso. Perigoso é encarar os manos da pipoca do Chiclete com Banana. Isso sim! Fiz algumas fotos de lugares que particularmente amo em Salvador. Tive que esperar a chuva dar uma trégua, o que levou uns três dias e meio para acontecer. Em Salvador conheci Dona Neuza, motociclista de espírito, uma figura rara em bom humor e uma mão santa para tempero. Caruru? É com ela mesma! Também tive a oportunidade de me divertir jogando videogame com a turminha do Jorge: Robertinha, Lalis, Binho e Gabriel mais conhecido como Arquejandomen por ter um sono de dar inveja a qualquer insone. Também tive o prazer de conhecer o jovem Igor. Menino maduro para sua idade, inteligente de quem ganhei uma lembrança e a quem presenteei com meu bracelete de roqueiro.

Voltemos a Linha Verde. Essa estrada é tudo que um bom motorista pede. Quase sempre reta, linda, pouco vento lateral e um tapete. Na estrada vinha fazendo média puxando um pouco mais pois dava para andar mais rápido. Na ida tirei de Aracaju a Salvador em quatro horas, mas na volta baixei para três horas e um minuto. No caminho me assustei com a falta de posto nas estrada. Não sabia que só iria encontrar um a oitenta e oito quilômetros de Salvador. O ponteiro da gasolina baixou muito e tive que refazer meus cálculos de cabeça para não correr o risco de uma pane seca. Cálculo vai e cálculo vem e a gasolina baixando. Me lembrei na minha agonia por baixo do capacete que não existem postos distantes do outro no Nordeste mais que oitenta quilômetros. Refiz as contas para saber onde errei, mas estava certo. O último posto que passei e não abasteci ficou  a cinquenta quilômetros atrás. Assim, mais uns vinte  e cinco ou trinta quilômetros à frente eu encontraria um ou uma patrulha rodoviária. Sobe e desce morro, passa curva e nada de posto e nem de polícia. Reduzi a velocidade para aumentar a autonomia. Embaixo do capacete, dentro da minha agonia, acreditava que não errara e refiz as contas e confirmei que acabaria a gasolina a cerca de 40 quilômetros de Salvador. Até lá iria fazer minha parte: reduzir a velocidade e esperar andando.

Alguns minutos depois uma patrulha. Parei e bati com a mão na lateral do tanque. O policial me pergunta se já estava na reserva. Respondi que não. Ele apontou pra estrada e disse aquilo que esperei por quilômetros para ouvir: Gasolina a doze quilômetros. ISSO! Gritei embaixo do capacete. Não havia errado. Mais um pouco à frente e chego ao posto. Parei por uma meia-hora para descanso e hidratação. Neste posto encontro um casal de argentinos descendo de volta para Buenos Aires e que também passou pelo mesmo susto. Na volta fui descobrir por que do susto. A placa que avisa que este é o último posto até quase a divisa com Sergipe estava um quilômetro antes da entrada do posto e era no sentido contrário.

Depois de ter descansado tirei pra Salvador e fui ao ponto de encontro combinado com meu irmão Jorge. Cheguei. Desci da moto. Ainda estava com a adrenalina nas alturas. Descansei em pé e mandei a mensagem para todos que havia chegado. Imediatamente recebo uma resposta: era Sara, minha assistente que ficou no meu lugar segurando os pepinos do setor enquanto eu tirava férias. A mensagem dizia – Parabéns! Missão cumprida!. Ai eu cai na real do que tinha feito. Pior: eu teria que voltar para contar a história mas não sem antes ouvir uns belos carões da mãe do meu irmão Jorge e da dona Neuza mãe de Selma pela aventura. Agradeci pelas orações, ajudaram muito. Foram fundamentais.

Voltar com cuidado pra contar a história. Foi isso que eu fiz na volta. Vim pela BR o tempo todo, na ponta dos dedos, com triplo cuidado, tirando nota dez em todos os trechos e etapas para poder chegar e contar esta história. Na volta meus amigos motociclistas do motoclube Guerreiros do Sol, do qual faço parte, Ivan, Danilo, Waldemar e Gomes me deram os parabéns e logo foi marcada um reunião para contar detalhes. Mas foi muita coisa e ai decidi escrever. Amadureci muito no meu hobby. Cresci como piloto e pude atestar que planejar 80% e executar em 205 do tempo é sim um receita de oriental para ocidentais aprenderem. Eu aprendi e voltei para contar como foi.

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Redação Geral

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