Você tem boa memória? Se você respondeu “sim” à pergunta do título, passe no Detran mais próximo e retire sua CNH de motociclista, sem complicações adicionais.
Para ter habilitação para pilotar motocicletas no Brasil não é necessário habilidade, basta apenas ter boa memória!
Podemos afirmar com certa segurança que ter uma boa memória é a única habilidade que nossos legisladores de trânsito entendem como necessária para alguém ser considerado apto a pilotar motocicletas no Brasil. Triste, mas a mais pura verdade. Acompanhem o raciocínio:
Para obter habilitação categoria “A”, que permite pilotar motocicletas de qualquer cilindrada, é preciso somente que o candidato decore uma cartilha que contém placas de sinalização de trânsito, alguma coisa de legislação, noções de primeiros-socorros, pouca coisa de direção defensiva e menos ainda de aulas práticas, aprendendo a tão somente a fazer o trajeto estabelecido pelo órgão de trânsito que aplica os testes. Depois disso basta fazer uma prova escrita, respondendo algumas poucas questões retiradas da cartilha previamente decorada e a pessoa já está praticamente habilitada. Aí é que concluimos que se a memória for boa, não há como o cidadão ser reprovado no teste, e nem precisa aprender, basta decorar.
O aprendizado resume-se à pilotagem em circuitos fechados
Ultrapassada essa etapa o indivíduo postulante ao direito de pilotar motos faz uma prova prática, devendo conduzir a motocicleta por um percurso em circuito fechado, composto de algumas retas, algumas curvas, um “8” marcado por cones e uma pequena rampa que não oferece dificuldade alguma.
Pronto!! O sujeito agora está habilitado, podendo ser chamado de motociclista e sair por esse mundão de Deus montado na sua reluzente máquina, quer seja ela uma Biz ou uma Hayabusa, transformando-se da noite para o dia em forte candidato a virar “presunto” na próxima esquina.
Haverá quem defenda a tese de que se o candidato consegue executar o percurso imposto no teste prático, já está provada a sua capacidade para pilotar com segurança uma motocicleta. Lêdo engano!
Sabe-se que a grande maioria dos Centros de Formação de Condutores ou Auto Escolas, cujo objetivo deveria ser o de capacitar o candidato, está apenas preocupada em ter mais um aluno habilitado, independente dele ter condições, afinal isso é “irrelevante”.
A tão sonhada Carteira de Motociclista
Nesse teste prático constata-se que as auto-escolas “preparam” a motocicleta, geralmente uma 125cc, regulando a aceleração de forma que o motor não “morra” e também o candidato não precise acelerar, ou seja, basta o candidato engatar a primeira marcha e fazer o percurso de forma mecânica e ensaiada, apenas controlando o guidão e o freio, nem precisando trocar de marcha. Até uma senhora octagenária é capaz de passar nesse ridículo teste com louvor.
Complementando o raciocínio, em nenhum momento o CFC leva seu aluno à rua para ensinar-lhe como portar-se no trânsito, como convergir em uma esquina, como se proteger dos outros veículos, como evitar o ponto cego dos retrovisores dos carros, como evitar tampas de bueiro e faixas pintadas no asfalto, da pista escorregadia em dias de chuva ou como frear em situações de emergência, ensinamentos essenciais para quem pretende se aventurar nesse trânsito caótico e assassino.
Resumindo, somente após receber a tão sonhada Carteira Nacional de Habilitação é que começará o verdadeiro aprendizado, nas ruas, sozinho, largado nas mãos da sorte, sendo nesse princípio de convivência com o trânsito, forte candidato a engrossar as estatísticas de acidentes com motocicletas no nosso país. E essas estatísticas são assustadoras.
Apesar das motocicletas representarem apenas 23% da frota, estiveram envolvidas em 67% dos acidentes com vítimas, conforme anuário estatístico divulgado pelo Denatran, número bastante expressivo e preocupante (estatísticas de acidentes com motos).
As estatísticas sobre acidentes com motos são públicas e devem ser usadas para o estudo de medidas prevencionistas
Esses dados, disponíveis para todos, deveriam servir como referência aos nossos legisladores de trânsito para que olhassem os veículos de duas rodas com mais respeito e interesse, entretanto a cada pacote de leis que são sancionados, ao invés de facilitar, o resultado tem sido exatamente o contrário, com normas de resultado inóquo, vide as recentes normas de utilização de capacetes, proibição de tráfego nas marginais, tentativa de proibição de garupa, aumento extorsivo do DPVAT, tentativa de proibição da circulação de motos em vias de trânsito rápido, e por aí vai. Os motociclistas são uma categoria expressiva e gostariam que lhes fosse dado o respeito e o valor que merecem. Querem ser tratados como cidadãos, que cumprem seus deveres cívicos, e querem também ver seu direito à vida assegurado.
Voltando ao tema original, entendemos que somente se dará um grande passo no sentido de reduzir o número exagerado de acidentes (e mortes) com motos, no momento em que medidas enérgicas forem tomadas para criar meios de, não somente habilitar o cidadão a conduzir motocicletas, mas, principalmente, prepará-lo de forma eficiente, dotando-o da habilidade necessária e suficiente para tal, gerando mecanismos para detectar aqueles candidatos que não chegaram ao nível mínimo de capacidade para pilotar e também apontar CFCs que não preparam corretamente seus alunos, impondo-lhes severas penas, inclusive o fechamento.
Modelos de degraus de cilindrada consagrados em outros países podem ser implantados no Brasil
Outra alternativa viável seria não querer “reinventar a roda” e simplesmente copiar modelos reconhecidos, que são adotados em outros países, como por exemplo o da Itália onde a habilitação é concedida em degraus de potência das motocicletas. Explicando melhor: lá o aprendizado começa aos 14 anos com scooters e motonetas de até 50cc; a partir dos 16 anos, com scooters e motos de até 20 hp; a partir dos 18 anos com motos até 34hp. Somente com 20 anos, ou seja, após 6 anos de experiência com motos pequenas é que o jovem italiano pode pilotar supermáquinas sem limite de potência ou cilindrada. Além do modelo italiano existem muitos outros modelos utilizados em outros países, que podem ser estudados e adaptados à realidade brasileira. Falta apenas vontade política e interesse público. Não sabemos qual desses modelos é o mais indicado e adaptável à nossa cultura mas o que não pode é continuar como está, alguma coisa tem que ser feita rapidamente porque o número de novos motociclistas cresce exponencialmente a cada ano e também o número de vítimas que tristemente vemos todos os dias nos jornais e noticiários.
Qualquer desses modelos consagrados em países mais “sérios” evitaria que muitos dos nossos jovens morressem todos os dias, simplesmente por estarem pilotando motocicletas para as quais não estavam preparados. Só nos resta rezar para que alguma cabeça lá no Contran seja iluminada e decida recorrer ao auxílio de profissionais com amplo conhecimento internacional de motocicletas e vida de motociclista, pois só assim veremos decisões acertadas e direcionadas a efetivamente preservar e salvar a vida dos milhões de cidadãos que utilizam diariamente seus veículos de duas rodas, quer seja por hobby e lazer ou por necessidade profissional ou de transporte pessoal.
Fonte: Texto e imagens 1, 3 e 5: Mário Sérgio Figueredo – demais imagens: arquivo Motonline