Expedição Pico da Bandeira. Por Luiz Almeida
Depois de acamparmos no Pico da Serra Branca, ponto culminante do Ceará, com 1154m de altitude, nos consideramos habilitados a conhecer o Pico da Bandeira, na Serra do Caparaó, Minas Gerais, terceiro pico mais elevado do país e o mais alto com acesso às pessoas em geral, com 2.892m de altitude. Os dois outros picos são o Pico da Neblina, na Serra do Imeri, Amazonas, com 2.993,8m e Pico 31 de Março, na mesma Serra do Imeri, AM, com 2.972,7m de altitude (dados do IBGE). Ambos em território fronteiriço ou em reservas indígenas, com acesso apenas para especialistas.
A diversão da viagem começou com o planejamento de datas, roteiros, pernoites e equipamento a ser levado, etc. Tudo isso em reuniões regadas a boas cervejas ou em divertidas trocas de e-mails. Tivemos que moldar o tempo de viagem e restringir passeios paralelos por conta da impossibilidade de dois amigos, por serem profissionais liberais, gozarem período de férias mais longo. Por fim, decidimos sair de Fortaleza no feriado do dia sete de setembro, uma sexta feira, e estarmos de volta no dia 18 do mesmo mês.
Depois de Marcelo e Pablo se declararem impedidos de ir, confirmaram participação na viagem Alexandre Daher, pilotando uma bela e veloz Honda CBR 1100 XX Super Blackbird, preta, evidentemente, Joarez Dallago montado na sua valente Yamaha Tènèrè 660 azul por imposição da fabricante, eu, Luiz Almeida, com minha confortável Suzuki DL 650 V-Strom cinza e Paulo Walrawen, o PW, na sua aventureira BMW F 800 GS branca.
Adesivei a V-Strom com dezenas de triângulos que fiz de contact transparente na região onde vai a mala de tanque para não ter preocupações estéticas durante a viagem. Também colei os adesivos alusivos à viagem desenhados pelo PW além dos do Histórias de Motocicleta, meu site pessoal, e do Motofotografia, site do nosso grupo de motofotografistas. Já o Alexxandre, mais caprichoso, mandou um profissional proteger toda sua moto com adesivagem transparente completa.
(Texto do Alexxandre)
No mês que antecedeu a viagem, enquanto nos preparávamos com acompra de todo o equipamento necessário, iniciamos uma contagem regressiva, dia a dia, até a chegada da última semana que antecedeu a viagem, onde, a partir daí,começamos uma contagem em números de horas que restavam para a nossa partida. De vez em quando chegava uma mensagem de texto no celular dos amigos com aatualização da contagem. Eram as horas diminuindo e a ansiedade aumentando.
Dia 07/09/2012 Sexta Feira
Chegou o dia ansiosamente esperado. Minha moto passou a noite já carregada, prontinha para a estrada, faltando apenas a mala de tanque, onde vai o equipamento fotográfico. Pouco antes das quatro da madrugada cheguei na casa do PW, nosso ponto de encontro para a partida. Alexxandre logo chegou também (o duplo X no nome dele é óbvio, né?). Tomamos um gostoso café feito pela Marilena W enquanto o PW ainda se enroscava com preparativos finais. Sem aperreios saímos pontualmente à quatro horas. Conduzimos as motocicleta com muita cautela até a saída da cidade porque vimos em muitas esquinas bares abertos e pessoas bebendo numa cidade silenciosa, deserta e sem lei.
Notaram que faltou o Joarez no grupo que saiu da W House? É que o cabra decidiu ir à Chapada Diamantina e cidades históricas mineiras, antecipando sua saída para o dia 2 de setembro, o domingo antes da nossa largada.
Os faróis da três motocicletas varavam a madrugada na BR 116 ainda na Região Metropolitana de Fortaleza numa estrada vazia enquanto à nossa esquerda um suave clarão anunciava o breve amanhecer do dia. Fazia um friozinho gostoso, na faixa dos 17 graus centígrados(segundo informava o painel da moto do PW), e os motores ronronavam com a potência contida pelos ajustes entre homens e máquinas.
(Texto do Alexxandre)
Nesse momento, o que me passava pela cabeça era a dúvida se tudo que havíamos combinado de levar realmente estava na bagagem. O Check-list haviasido incansavelmente atualizado e incrementado durante os dias que antecederam a viagem e toda a bagagem havia sido preparada com antecedência. Então era só relaxar e segurar o punho firme no acelerador.
Como era Sete de Setembro, dia da pátria e nosso rumo era o Pico da Bandeira, nossa viagem soava um tanto patriótica. Fui, portanto, cantarolando o Hino Nacional dentro do capacete até enjoar.
Entre as partes altas e baixas da estrada, vimos o sol nascer em forma de gema de ovo de galinha caipira por três vezes. Seus reflexos e sombras nas lagoas da beira da estrada davam vontade de fotografar, mas nos contivemos. Havia muito chão pela frente!
Com dia já claro e 165km rodados, paramos em Russas para o primeiro reabastecimento das motocicletas e um cafezinho. Minha moto fez 22,81km/litro. Um bom consumo de gasolina para quem está equipada com malas laterais e um sacolão no lugar da garupa com material para acampamento. A moto do PW fez 20km/litro e o Alexx completou o tanque da Blackbird, digo, da Graúna, com valores próximos aos nossos. Dentro do capacete pensei: ótimo, já passamos de dez por cento da pernada programada para o dia.
Saímos do posto e rumamos ao sul, em direção ao nosso destino. Mais adiante, quando notei a ausência prolongada dos faróis das motos dos amigos, retornei. O PW havia parado no acostamento para ajustar o capacete que o incomodava. Este é o problema de se usar equipamento novo em viagens longas.
A BR 116 Rodovia Santos Dumont estava em bom estado e o tráfego sem complicações. O ruim desse trecho da estrada é a enorme quantidade de animais na pista, conforme frequentes carcaças a apodrecer, exalando seus miasmas, no acostamento são testemunhas. No Ceará não há lombadas tipo aqueles mondrongos no asfalto, apenas civilizados fotossensores para 60km/h.
Bordejamos as águas de profundo azul do açude Castanhão à nossa direita, enquanto a Chapada do Apodi era vista à nossa esquerda até que, depois de mais 195km rodando paramos nas proximidades de Icó para o segundo abastecimento. A menor autonomia entre a três motocicletas é a da GS, que pode chegar aos 300km. No entanto de que vale a grande autonomia das motos se a autonomia das nossas bundas é menor? Um breve descanso é sempre bom e ajuda a se fazer uma grande jornada, recupera a atenção e relaxa a musculatura do corpo, dando mais segurança para continuar pilotando. Porém, é importante não se demorar demasiadamente em cada parada, pois o somatório de tempo, digamos de dez minutinhos a mais numa parada, vai se transformar em boas horas perdidas no final do dia. Portanto, é preciso objetividade: abastecer a moto, beber água, visitar o pipi-room e alongar a carcaça sem mais delongas.
(Texto do Alexxandre)
Nessa hora, o Luiz nos fez o favor de parar num posto de gasolina daqueles mais perebas que podem existir numa estrada. Posto sem bandeira, sem ter ao menos o piso de cimento queimado (uma norma exigida para os postos de gasolina, se não me engano). Só faltei chorar vendo aquele líquido, que o frentista dizia ser gasolina, preencher o tanque do Pássaro Negro. Tanto posto com aspecto melhorzinho tínhamos acabado de passar e ele decidira parar logo ali. Eu não tinha coragem nem de beber a água ali, imagine, então, abastecer a moto. Mas como eu não queria atrasar a viagem com uma desnecessária parada extra mais à frente para o abastecimento da minha moto, o jeito foi abastecer ali mesmo. Apesar de tudo, o líquido se mostrou comprimível e explosível nos duzentos quilômetros seguintes até nossa próxima parada. Ufa, ainda bem.
Dessa vez a Struminha fez uma média de 16,22km por litro de gasolina. Acho que o frentista de Russas, temendo meus alertas para que não derramasse combustível no tanque, não o completou totalmente. Também pudera, desde que minha saudosa Shadow 600 levou um banho de gasolina, resolvi este problema sempre avisando previamente aos frentistas que se derramassem gasolina na moto não pagaria a conta.
O sul do Ceará, a Região do Cariri, a mais fértil do Estado em matéria de agricultura, está totalmente seca. Da estrada vê-se que muito pouco, ou nada, foi colhido neste ano. Triste ver uma paisagem calcinada onde antes se via verdejantes vales. O vento forte vindo da esquerda nos estapeava o capacete a todo instante. Nessa região vimos placas de Pousada Patagônia, Posto Patagônia e Restaurante Patagônia. Fiquei a pensar intracapacetemente se não seriam alusivos aos fortíssimos ventos que assolam os motociclistas que se aventuram naquela região da Argentina.
Cruzamos a divisa de Estados entre o Ceará e Pernambuco buzinando e mantive meu costume de tocar rapidamente com as botas o solo do novo Estado que nos recebe. Não sou supersticioso, acho que esse negócio de superstição dá azar… apenas mantenho um costume antigo e nada mudará caso eu não o faça.
Alongamos a pernada e paramos em Salgueiro com 237,8km rodados desde Icó. O consumo da DL foi de 16,92km/litro, demonstrando que o frentista de Russas não era tão frouxo assim, ou que rodamos mais rápido sob forte vento no trecho, ou que ela vai beber isso mesmo durante a viagem toda. Veremos.
Contornamos a grande rotatória onde a estrada dá opção de ir por Petrolina e seguimos em direção à ponte nos leva a Ibó, cruzando o Rio São Francisco, com suas águas de esmeralda, adentrando a Bahia. Tal como todos os outros que passamos até então, o posto da Polícia Rodoviária Federal parecia abandonado, sem nenhum policial do lado de fora. Estariam ainda em greve?
Observamos o aumento de animais na pista. A maioria cabritos, mordiscando alguma coisa no acostamento.
Complicado manter uma boa velocidade na expectativa de que a qualquer momento um cabrito possa correr do acostamento para a pista bem diante da roda dianteira da motocicleta. Superando temores e se acostumando com a situação, muito atentos, conseguimos manter o velocímetro entre os 110/120km/h durante as retas intermináveis na monótona paisagem da ressecada caatinga do Raso da Catarina, grande vazio demográfico no Estado da Bahia, zona de transição entre o clima árido e semi-árido com baixíssima pluviometridade, ou seja, transição entre deserto e semi-deserto.
O Raso da Catarina foi palco da Guerra de Canudos e, devido à dificuldade de acesso, esconderijo de cangaceiros. Creio que ainda serve de esconderijo a muitos bandidos de hoje em dia. É região cujo tráfego noturno é fortemente desaconselhado.
Em todo o trecho só vi duas cabras mortas no acostamento. Acredito que aos cabritos era dado o devido atendimento de primeiros socorros e iam cair nas panelas ou espetos de quem sofreu o infortúnio de atropelar um.
Alexxandre, cansado de grande retas em estrada praticamente sem curvas o dia inteiro animou-se quando viu uma placa de curva à esquerda. Vibrou apontando a placa e levantando o braço. Preparou-se para deitar sua Graúna numa gostosa curva e frustrou-se ao ver que a tal curva sequer chegava a cinco graus. Nem a trezentos por hora daria para inclinar a moto. Êh sertão seco, êh estradinha chata e calorenta!
(Texto do Alexxandre)
O sol a pino não dava trégua em nenhum momento. Não havia sequer nuvens esparsas para sombrear um trechinho que fosse da estrada. Nesse momento além do casaco, a calça de cordura juntamente com uma calça segunda-pele. O calor era grande mas, suportável dentro de nossas armaduras.
A parada em Bendegó serviu mais para hidratação dos pilotos do que para abastecimento das motos. Era por volta das duas horas da tarde e a moto do Alexxandre mostrou um balançado estranho no bauleto. Eram parafusos frouxos e eu tinha a ferramenta correta para o reaperto. O dono da graúna também notou que a bela plastificação feita em sua moto não estava resistindo ao vento. A Struminha e a GS 800 de nada reclamavam.17,30km/litro foi a sede da DL.
Em Bendegó, no ano de 1784, um filho de vaqueiro encontrou um meteorito de mais de cinco toneladas, denominado Pedra de Bendegó. É o maior meteorito já encontrado em solo brasileiro. No momento do seu achado, tratava-se do 2º maior meteorito do mundo, mas hoje ocupa o 16º lugar, em tamanho. A notícia do achado correu o mundo e houve uma verdadeira epopéia para se transportar a pedra caída do espaço. Hoje a Pedra de Bendegó, para desgosto do povo da região, encontra-se no Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro.
Passamos por Euclides da Cunha por volta das três da tarde o que nos garantia chegar a Feira de Santana antes do anoitecer. Acontece que fica complicado manter uma média de velocidade razoável já que em cada cidade ou lugarejo que cresceu em volta da estrada há uma proliferação de lombadas que nos obriga a quase parar a moto para galgá-las, além das filas de caminhões que se formam. Além de outros muitos fotossensores para velocidades de 40, 50 e 60 km por hora.
Os últimos 15km antes de Feira de Santana foram os piores do dia. Além do nosso cansaço natural por termos rodado 1100km, o tráfego era intenso, a luz do dia já se esmaecia e, para coroar a infernal chegada, o asfalto estava frisado na banda de rodagem dos carros e caminhões, ficando apenas o centro da faixa com asfalto liso, a uma altura de cerca de 4cm do frisado. Descer para o frisado e retornar ao meio seria tombo na certa. Ficamos, portanto, entalados nesse trânsito caótico até chegarmos a um posto e pedirmos informações a uma atenciosa frentista.
Com a indicação de hotel e rumo a ser tomado, apesar a enorme fila de carros, carroças, motocas, bicicletas e caminhões, chegamos sem mais dificuldades ao hotel Cavalo Dourado, localizado na pista de acesso à BR116 Rio Bahia. Achei um pouco elevado o custo do apartamento triplo por R$180,00, mas havia garagem fechada para as motos e as instalações eram limpas e relativamente confortáveis.
Ao tentar levar parte da minha bagagem para o apartamento no terceiro pavimento, entrei no elevador e, achando que não estava funcionando, desisti e subi pela escada mesmo. Ao descer fui informado pelo cidadão da recepção que o elevador funcionava, sim. Indicaram-nos um restaurante e resolvemos matar nossa fome e sede antes de qualquer coisa, pois seria melhor sair do banho direto para a cama.
Mesmo cansados de mais de 14 horas pilotando, montamos nas motocicletas e logo estávamos em torno de uma mesa tomando cerveja e pedindo o almoço, digo, o jantar mas que era almoço, sim, pois só comemos biscoitos e chocolates na estrada. O restaurante servia uns espetinhos apetitosos acompanhados de um feijão tropeiro à moda baiana, que consiste apenas em feijão refogado com farinha e nada mais. Havia também uma boa batata apimentada. Solicitamos uma porção de arroz: aqui não trabalhamos com arroz, disse laconicamente o garçom, afastando-se de nós. Repetimos as cervas, os espetos e a batata. A batata não era muito ardida no começo. Depois, conforme íamos comendo o ardor se acentuava. Estávamos na Bahia!
Antes de voltar ao hotel abastecemos as motocicletas para agilizar a saída no dia seguinte. Numa pernada de 277,9km a Struminha bebeu 1 litro de gasolina para cada 17,70 km que rodou.
No hotel, entendi porque pensei que o elevador estava inoperante. Na Bahia experimentei o elevador mais lento do mundo! Claro que não perdi a piada. Agradeci ao recepcionista porque somente depois de me transportar naquele elevador eu me senti estar na terra de Dorival Caymmi.
Fui o primeiro a banhar-se e a espichar o esqueleto na estreita cama de solteiro. Alexxandre ficou na garagem arrancando a plastificação ordinária da Blackbird e usando cera de polir para não deixar resto de cola na carenagem. PW parecia um grilo fazendo um nhec nhec reec nhec sentado no chão do apartamento raspando o isopor do seu capacete que o deixara com as orelhas doloridas. Adormeci profundamente ao som dessa melodia. Nhec reec nhec nhec reeec nhec….nhec…
Dia 08/09/2012 – Sábado
O café da manhã seria servido a partir das 06:30h. Certamente sairíamos com atraso para a jornada de 950km prevista para o dia. Fato. Meus amigos se demoram na arrumação das motos e fazem uma lauta refeição matinal. Eu que fiquei num frugal café com leite e pão com manteiga, já com a moto em ponto de partida, corrente lubrificada, etc. Tentei não demonstrar ansiedade ao aguardá-los. Porém não resisti em pedir ao PW que não se demorasse muito na sua última subida ao apartamento. Acho que atrapalhei o bom amigo na realização de um momento íntimo e solitário… Era quase oito horas quando finalmente começamos a rodar na Rio-Bahia.
Durante o café da manhã, o Alexxandre confessou qual foi a maior recomendação da Layla, sua mulher, sobre esta viagem: Não vá na onda do Luiz.
(Texto do Alexxandre)
Já conhecido, literalmente, de outros carnavais, Luiz Almeida é o cara que, entre nós da turma, é denominado como O Ciborg. E por que tal denominação? Segundo a Layla, minha esposa, o Luiz é um ser humano fora dos padrões normais. Ele pode beber cerveja o dia inteiro e simplesmente não ficar bêbado. Ele não come e não sente fome. Ele fuma e eu nunca o ouvi tossir. Ele pode dormir somente quatro horas por dia e já estar recuperado pra mais um dia de batalha. Na verdade, o Luiz é o tipo de ser humano que os cientistas tentam desenvolver em laboratório para servir nas forças armadas. O cara é quase uma arma biológica. Diante disso, temendo pela minha saúde, Layla havia me dito para não me deixar levar pelo ritmo do Luiz. Era pra eu me lembrar de comer, de beber água e de dormir. Afinal de contas, nem todo mundo tem o privilégio de passar o dia com apenas um gole de água, um gole de café e alguns cigarros. Esse é o Luiz!
O trecho da Rio Bahia entre Feira de Santana e a divisa com Minas Gerais está sob a administração da Via Bahia, empresa que detém a concessão desta parte da BR 116. É cobrado pedágio e os preços variam conforme o tipo de veículo. Para motocicletas cobram R$1,50. Posso afirmar que no trecho sob concessão o asfalto está em bom estado, havendo apenas poucos quilômetros com o pavimento antigo e apresentando rachaduras. Há diversas obras de melhoria e serviço de atendimento ao usuário.
Antes de entrarmos efetivamente na estrada, alertei os amigos, que ainda não tinham experiência em estradas semelhantes, sobre o tráfego pesado que iríamos enfrentar naquele dia, lembrei que cada um deveria cuidar individual e prudentemente de suas ultrapassagens e que, como seria temeroso ultrapassar diversos caminhões/treminhões e em seguida aguardar que os demais o fizessem, tendo que ficar em velocidade mais lenta diante do caminhões, provavelmente não rodaríamos o tempo todo juntos. Marcamos como pontos de reencontro as praças de pedágio. Havia cinco delas até chegar em Minas Gerais.
Eu conhecia bem a BR 116 neste trecho porque nos anos 70 viajava de co-piloto na Kombi do meu pai no tempo em que morávamos em Santos e anualmente vinhamos de férias à Fortaleza por esta estrada. A última vez que havia rodado na 116 foi em fevereiro de 1983, dirigindo um Fiat 147, trazendo de mudança mulher, filhota com quase um ano de idade e respectiva babá.
Começamos com enorme subida, enorme fila de caminhões, enormes formações rochosas à frente e tempo nublado com temperatura amena. Os monólitos formando garganta engolindo a estrada me lembraram Quixadá, mas a paisagem era outra bem diferente do semi-árido nordestino. Foi um dia muito divertido. Acelera, deita a moto para um lado, deita para o outro, freia, ultrapassa com fortes acelerações, olha, espera, duvida, sai da faixa, volta para a faixa, passa um, passa dois, passa cinco caminhões de uma vez só. Cumprimenta buzinando, é cumprimentado com buzinaços.
Em um determinado ponto da estrada uma grande formação de pedras à frente me trouxe recordações da adolescência e, como a luz estava perfeita, fiz sinal para os amigos avisando que iria parar para fotografar. PW não entendeu e passou direto, acelerando firme. Com a DL e a Graúna no acostamento do lado contrário, eu e Alexx fizemos algumas fotos e logo fomos encontrar o PW mais à frente. Tendo este sido avisado por dezenas de caminhões de que estávamos parados um pouco atrás.
Convivemos muito bem com os profissionais da estrada. PW falou que aquela experiência o fez mudar o conceito negativo que tinha sobre caminhoneiros. Respeitamos e fomos respeitados, não atrapalhamos e fomos ajudados, cumprimentamos e fomos cumprimentados.
Caminhoneiros de longo percurso são diferentes dos de região metropolitana, sabem o que fazem e raramente nos surpreendem. Melhor dividir o asfalto com caminhões do que com carros de passeio. Estes sim, fazem manobras inesperadas e imprudentes. Nas praças de pedágio, enquanto nos reencontrávamos e conversávamos um pouco, sempre recebíamos festivas buzinadas e acenos daqueles que ultrapassamos havia pouco tempo. Acho que cada vez mais caminhoneiros andam de motocicleta nas horas de folga.
Na BR 116 só vimos dois acidentes, ambos com caminhões. Um no nosso sentido de viagem e outro no sentido contrário. Tombaram em curvas descendo ladeiras. Espero que todos os envolvidos tenham sobrevivido.
Fizemos uma breve parada em Jequié. Minha moto fez 20,32 km/ litro. Saí da bomba para o café na lanchonete ao lado. Uma mulher lá pelos seus 60 e tantos anos limpava o velho e encardido balcão cuidadosamente. -Bom dia! Por favor, um cafezinho, eu pedi. A mulher prosseguiu na sua faxina me ignorando por algum momento até que largou o que fazia indo para o outro lado do balcão para perguntar o que eu desejava mesmo. -Um cafezinho, por favor, repeti. Serviu-me a contragosto e ainda me cobrou um real quando em todo canto o café ou era de graça, ou era cobrado cinquenta centavos. Paguei olhando torto para a mulher e fui cuidar de limpar a viseira do capacete lembrando-me que ainda estava na Bahia…
Por volta de 1 hora da tarde, após pagar um pedágio e me dirigir a um ponto no acostamento para aguardar o amigos. Acendi um cigarro e um vendedor ambulante que não estava muito distante me ofereceu um café muito bem-vindo. Abriu uma cesta de palha e também me ofereceu apetitosos pastéis. Preferi o de queijo ao de carne ou presunto. Melhor não se arriscar com essas coisas de beira de estrada… pensei. Os amigos chegaram e o Alexxandre, que tem rejeição à lactose, pediu pastel de carne e comeu dizendo que estava muito gostoso. PW fez o mesmo e, ao pedirem uma nova rodada de pasteis de carne, também pedi um. Às favas a prudência gastronômica! Se algo der errado, iremos todos parar na mesma enfermaria! E tudo estava muito bom mesmo. O melhor lanche da viagem e esquecemos de perguntar o nome do simpático vendedor.
Mais 270 quilômetros de chão e toquei com as botas a terra dos Inconfidentes e de Chica da Silva. Entrei em Divisa Feliz, abasteci e lubrifiquei a corrente da moto. Rodamos um pouco sob chuva e a água na estrada sempre lava o óleo da corrente. Os amigos tardaram a chegar porque pararam para fotografar a placa de divisa de estados. Ao completar o tanque, verifiquei um consumo de 17,74 km / litro. Raros os postos com gasolina aditivada.
A propósito da sinalização, parece não haver critério na colocação de placas de curvas. Vemos uma placa de curva simples e encontramos uma curva acentuada. Vemos placa de curva acentuada e encontramos uma curva aberta. Não há placas informativas sobre as pontes e o nome dos rios que elas cruzam. Há placas de asfalto danificado quando a pista está perfeita. Obras à frente e nem sinal de homens ou máquinas. As placas informativas de distâncias são raras e, das poucas existentes, muitas estão ilegíveis. Tudo isso, esse desleixo, leva ao descrédito e passamos a não mais acreditar ou respeitar a sinalização. Os postos da PRF continuam aparentemente abandonados.
(Texto do Alexxandre)
Isso me fez lembrar a placa de sinalização mais interessante da viagem, que trazia gravado: ACREDITE NA SINALIZAÇÃO. Na hora, me lembro de ter dado boas risadas dentro do capacete. Chega a ser cômico, apesar de trágico.
Em Minas, acaba-se a moleza. Voltaram as lombadas físicas em conjunto com as eletrônicas de velocidades variando entre 60 e 40 por hora. Ainda bem que a corrente da minha moto era muito bem lubrificada e a placa ia ficando cada vez mais suja com o salpicar do óleo… Havia cidades em volta da estrada que nos anos 70 a gente só via a placa indicativa e mais nada. Caratinga e Padre Paraíso são exemplos de cidades que incharam em torno da BR. E tome lombadas e consequentes filas de caminhões para transpassá-las! Além do limite da paciência, confesso que fiz muitas ultrapassagens pelo acostamento e por faixas contínuas. Mas só nessas situações de trânsito paradão, com muito cuidado, evidentemente.
O único momento, podemos dizer, tenso, desse dia foi quando numa grande descida com faixa contínua no centro da pista e com terceira faixa no sentido contrário, senti-me seguro para ultrapassar um caminhão lento, porque a fila de caminhões em sentido contrário estava toda na terceira faixa, deixando todo o longo declive à frente livre. Deitei a moto para esquerda saindo da traseira do caminhão e, quando ia torcer o punho, naquele mesmo momento, o cabeção vermelho de uma carreta saiu da fila para ocupar a mesma faixa que eu. Ooooops! Voltei rapidinho para o meu canto. Reflexo é saúde!
Sem que percebêssemos o tempo passar, o dia pleno de pilotagem começou a terminar. Saímos tarde e nos demoramos nas paradas, enfrentamos filas de caminhões em cada zona urbana e tráfego pesado na estrada. Como a maioria das longas subidas conta com terceira faixa, aquelas famosas filas de caminhões não nos atrapalharam muito. Fez-se noite, Governador Valadares ainda está longe e a próxima parada prevista é Teófilo Otoni.
Além a ausência de animais na pista, fato muito comum no nordeste animais na pista, notei também que não era necessário implorar para que o veículo que vinha no sentido oposto baixasse os faróis. A grande maioria dos caminhões baixava os faróis antes mesmo de entrar no nosso foco, de concluir uma curva. Fiquei até meio constrangido por, em muitas vezes, não ser eu o primeiro a baixar o farol alto. Não estava acostumado a isso. A educação de trânsito aqui no nordeste é das piores. E a do povim também!
Com apenas a luz dos nossos faróis a iluminar a estrada, reduzimos nosso ritmo e ficamos bem mais cautelosos nas ultrapassagens. Nos mantivemos juntos e com tranquilidade, curva após curva, por volta das oito da noite chegamos a Teófilo Otoni. Paramos num posto, abastecemos as motos e aplacamos nossa sede. Dessa vez minha moto surpreendeu com um consumo de 24,04 km / litro. Suave é a noite!
(Texto do Alexxandre)
Abro aqui um parênteses para relatar que, para mim, esse foi o melhor trecho estrada em toda a viagem. Apesar do trânsito mais pesado durante o trecho de saída próximo à Feira de Santana, a estrada Rio-Bahia possui um cenário lindo. O asfalto é, em quase todo sua extensão, de muito boa qualidade. Após a entrada no estado de Minas Gerais, conseguimos imprimir um ritmo mais acentuado porque já havia bem menos caminhões.
A parte mais bonita desse dia veio de tarde quando, já em terras mineiras, a paisagem havia se tornado mais montanhosa, iluminada por um Sol tropical em um céu com azul profundo. As serras e vales que davam passagem à estrada estavam verdes e, em sua maioria, cobertas por vastas plantações de café e eucalipto. O aroma na estrada, uma mistura de eucalipto com o cheiro suave de asfalto, tornava a viagem ainda mais agradável.
A temperatura já estava bem mais amena do que a do dia anterior no sertão da Bahia e, apesar do cansaço físico devido às poucas horas de sono na noite anterior e das muitas horas já pilotando, o trecho era muito prazeroso. Para completar, o restante da paisagem era estonteante.
Como eu vinha atrás do grupo durante toda a viagem praticamente, seguindo a 800Gs do PW e a V-Strom do Luiz, eu ainda tinha o privilégio de acompanhar visualmente o balé que as motos faziam à minha frente durante as curvas que nos eram apresentadas. Coisa bonita de se ver, mas difícil de descrever.
Foi um dia bem legal. Grandes e compridos caminhões me davam a oportunidade de despejar no asfalto os 164cv da XX. Toda ultrapassagem era uma diversão. Eu só precisava esperar PW e Luiz ultrapassarem e estarem com segurança lá na frente para ter uma desculpa pra engrenar uma quarta ou uma terceira e fazer com que os 4 cilindros revolucionassem aos Oito, Dez mil giros durante alguns poucos segundos. E assim, também, era com toda curva mais acentuada, feita com motor cheio, Seis, Sete mil giros, acelerador firme, e eu ainda estava só na metade do que ela podia me entregar. Via a curva, reduzia marcha, buscava a melhor trajetória, e aí deita moto pra um lado, deita moto para o outro. Esquece consumo!
Enquanto isso, dentro do capacete, o rock de Bob Catley, o samba de Jorge Aragão e o PopRock dos Engenheiros do Hawaii me forneciam uma parcela da trilha sonora para aquela que, para mim, era uma das melhores experiências já vivenciadas sobre as duas rodas. A outra parcela era preenchida pelo ronco ímpar de um verdadeiro Four Japonês, saudável e satisfeito, fazendo a XX percorrer as estradas de asfalto exemplar num ritmo que ele gosta de trabalhar. Foi um dia feliz ao lado do pássaro negro. Obrigado, Honda! Ali, naquele fim de dia, a viagem já havia se pagado pra mim.
Havia mensagens no meu telefone dos amigos que nos aguardavam em Governador Valadares. Liguei para o Carlos Salgado e ele nos informou que estávamos a apenas 150km de Valadares e que dali em diante a estrada estava em perfeito estado e com muito menos sinuosidade do que o trecho que passamos. Consultei os amigos para saber se estavam dispostos a seguir em frente por mais duas, duas horas e meia de estrada. Alexxandre topou e PW, que demonstrava um certo cansaço, disse que responderia depois de tomar um Redbull. Enquanto isso fui tomar um café e fumar um cigarrinho para pensar. Ora, percebi pelo olhar que meus amigos estavam relutantes. Pensei: para quê insistir em seguir até Valadares se chegaremos lá depois das dez da noite – capaz de lá pelas onze – e se vai ficar, portanto, complicado farrear muito tarde da noite com os amigos que nos esperam? Voltei e falei pros amigos que o melhor mesmo era dormirmos em Teófilo Otoni e que, se o PW quisesse, poderia deixar o tal energético pela metade. Foi legal ver quatro olhos brilharem. Um plano de viagem é feito para poder ser alterado conforme a situação. Fiquei feliz por ter ainda a sensibilidade para perceber a tempo o que a turma preferia.
Na área do posto de gasolina em que estávamos, um cabra chato me pedia cigarro e insistia em fazer indicação de hotel. Neguei o cigarro e interessei-me pelo hotel. -É muito bom e barato, o cabra disse, não respondi. -Tem até mulher de graça, o cabra insistiu e eu desisti do tal hotel que mais me pareceu um bordel. Confundindo-me com os pidões, por engano cedi um cigarro para outro cabra e mandei o primeiro ir tomar o que deveria ser dele. Aproveitei o momento de paz enquanto os malas brigavam e me informei com os frentistas que nos mostraram um bom hotel localizado quase em frente ao posto.
Motocicletas em estacionamento protegido, bom apartamento triplo, saímos a pé para almoçar no restaurante, com serviço tipo bifê, anexo ao posto em que estivemos antes. Nossa fome nos fez achar que a comida mineira oferecida no balcão era boa. Mas essa impressão durou pouco e o churrasco oferecido era sofrível e a comida gordurosa. Valeu para sobrevivência e o bate papo sobre o movimentado dia de estrada, regado a cerveja.
Dia 09/09/2012 – Domingo
Acordei cedo da noite bem dormida. Cumpri meus ritos matinais e, enquanto não era servido o café da manhã, tratei de lubrificar a corrente da moto e arrumar a bagagem. Só havia levado para o apartamento o bauleto e a mala de tanque.
Depois do café, combinei com o Alexxandre que ficássemos fazendo algo em torno das motos para, discretamente, deixar o PW à vontade no apartamento, para que ele se recuperasse, sem traumas, do bloqueio da hora da saída em Feira de Santana. Parece que deu certo. Depois de cerca meia hora ele surgiu muito bem humorado para arrumar a tralha na moto dele. E que arrumação demorada!
O pessoal Brazil Riders de Governador Valadares nos encontraria na estrada. Era quase oito horas quando liguei para o Salgado avisando que estávamos saindo de Teófilo Otoni.
Faltando uns 40km para Valadares cruzamos com a turma de uns dez motociclistas que vieram nos escoltar, capitaneados pelo Brandão, Conselheiro Brazil Riders em Minas Gerais. Ficamos honrados e felizes com a deferência. Paramos à sombra de um bambuzal para abraçar os amigos. Foi uma festa na beira da estrada, muitos dos valadarenses já haviam tomados cervas com camarão no Mucuripe, na oportunidade em que os recebi em Fortaleza. Salgado preencheu minha malas laterais com especialíssimas cachaças mineiras. Papo vai, papo vem, retornamos à estrada e paramos em Gov Valadares para concluir a conversa, tendo que, lamentavelmente, recusar diversos convites para churrascos, passeios em trilhas e montanhas e mesmo pousar na casa dos amigos. Era quase onze horas quando nos despedimos do amigos. Ficamos muito gratos, porém nossa programação era chegar a Alto Caparaó naquele domingo.
Domingo: carros de passeio na estrada, cuidados redobrados. Foi o que precisamos ter na estrada depois de Valadares. Muita burrice ao volante, muita falta educação e ultrapassagens imprudentes. Até um cabra quase dormindo ao volante eu tive que acordar para ele ir para a terceira faixa com sua lentidão de tartaruga manca.
No trecho entre Gov Valadares e a rotatória do encontro da BR 116 com a BR 262 cruzamos com um motociclista solitário pilotando uma V-Strom 650 azul com malas laterais. Houve uma simpática e efusiva troca de cumprimentos. Dias depois, quando estávamos na BR 101, depois de sairmos de Vitória, cruzamos com o mesmo camarada e novamente trocamos vigorosos cumprimentos. Se ele lembrar que na BR 116 cruzou com uma V-Strom 650 cinza, uma Black Bird preta e uma F800GS branca e na BR 101 apenas com a V-Strom e a GS800, pode ser que saibamos quem seria ele, se o mundo for pequeno como dizem…
Conforme eu havia previsto aos amigos, encontramos à nossa esquerda um riacho que acompanha a estrada por muitos quilômetros, acho que por mais de trinta. A estrada sobe, desce, vira para um lado, vira para outro lado e o riacho ali, a nos acompanhar. No passado, já o havia visto em tempo de chuva, caudaloso. Agora corria calmo. Rio Caratinga, foi o que informou a rara placa na ponte em que ele passava para o outro lado da estrada e desaparecia dentro das matas mineiras.
Em Caratinga paramos para abastecimento e lanche. 20,70 km/ litro foi o consumo da Struminha. O frentista demorou, mas quando entendeu caiu na risada ao perceber que quando eu perguntava se a gasolina era cristã, eu queria saber se ela era batizada. Nessa cidade percebi que as lentes dos fotossensores só fotografavam a placa dianteira dos veículos. Comecei a desobedecer os limites de velocidade. E a placa da minha moto estava cada vez mais suja…
Por conta das minha travessuras cheguei ao trevo do cruzamento da BR 116 com a BR 262 bem antes dos amigos. O tráfego, acho que por conta do domingo, estava caótico e o restaurante Barrigão, onde já comi muito bem, estava tão lotado que nem para pedir um cafezinho valeria a pena. Fazia muito calor e estacionei sob a sombra de uma árvore para aguardar os cabras. Ao nos reencontrarmos fizemos algumas fotos e alguém falou: – olha o Joarez! Não é que, sem nenhuma combinação prévia, nos encontramos com o Joarez, que vinha da Chapada Diamantina e de Diamantina para Alto Caparaó, naquele ponto! Comemoramos e seguimos em direção a Manhuaçu, pela BR 262.
Manhuaçu foi a cidade mais estressante de atravessar de toda a viagem. Calor de rachar, trânsito infernal, caminhões velhos e fumacentos, lombadas físicas e eletrônicas de fazer lama. Para ignorar toda essa lambança de limitação de velocidade, contei com o anonimato da placa da minha moto que estava bem sujinha. Culpa dos salpicos do óleo da corrente, claro. Mesmo assim ainda tive saco para fotografar um conjunto de casas coloridas que cobria uma colina. Quando os amigos chegaram e também pararam para fotografar me mandei. Precisava de vento. Meu capacete estava encharcado de suor e grudando na cabeça. Aguardei o povo na entrada da estrada estadual que leva a Alto Caparaó.
Mais lombadas e agora uma novidade. Inventaram umas lombadinhas menores e as colocam de dez em dez a cerca de dois metros umas das outras. Riégua!
Entra-se em Alto Caparaó através de um portal com o nome da cidade e a altitude do Pico da Bandeira. Antes de chegar ao portal se desce uma longa ladeira de onde pode-se ver e sentir a imponência da montanha. Chegamos entre duas e três da tarde e o calor continuava intenso.
Enquanto arrumávamos as motos para uma foto no portal, um cidadão conduzindo um carro cheio de crianças parou para pedir-me alguma orientação. Expliquei que éramos de fora e estávamos acabando de chegar. O cara, estressadíssimo, reclamou que a meninada não parava de falar e a mulher dele, no banco ao lado também. Quando ele partiu ainda ouvimos um estrondoso pôo#*ra! berrado de dentro do carro.
Ao chegarmos na Pousada do Rui encontramos o Davi, do M@D, um fórum de motociclistas que participo há mais de década. Não o conhecia pessoalmente e ele veio de Cachoeiro de Itapemirim para receber de minhas mãos o livro Histórias de Motocicleta, além de nos acompanhar na subida ao Pico da Bandeira. Foi bom conhecer um cabra com o qual converso via fórum há muito tempo.
Os apartamentos ficaram divididos entre canonzeiros e nikonzeiros, ou seja eu e o Joarez, que fotografamos com Nikon, ficamos em um apartamento e PW e o Alexxandre, que fotografam com Canon, ficaram com outro. No entanto, só foi possível dividir apartamento com o Joarez na condição de que ele mantivesse sua botas e meias do lado de fora. Aff.
Para almoçar, Rui, o dono da pousada, nos indicou um restaurante cuja distância nos permitia ir a pé. Comidinha honesta e boas cervejas. Fomos comendo e jogando conversa fora e bebendo e mais conversa e repetiram o LA de Luiz Almeida na minha ficha de pedidos e, para zoação do Davi, apareceu um Lalá na estória e fomos bebendo e falando e dando risadas e nos divertindo uns com os outros e mais e mais que só sei que só saímos do lugar quando acabamos o estoque de cervas e o dono ameaçando nos expulsar de tão familiar ambiente. No meio de toda essa algazarra acertamos o serviço do guia Claudemir e uso das mulas.
Dia 10/09/2012 Segunda Feira
Dia seguinte, mantimentos comprados (já trazia os meus na bagagem, além de álcool e fogareiro), equipamento pronto e jeep na porta da pousada. Pensei que o jeep seria um tipo Toyota Bandeirante, mas era Jeep Willys mesmo, daqueles antigos dos anos 60. Este é o Jeep que vai levar cinco pessoas além do motorista e a bagagem? Assustei-me. O Rui e o motorista me garantiram que o transporte era seguro e bem revisado. Falei ao motorista que não gostaria de passar por fortes emoções na subida à Tronqueira e apontei um pneu que me parecia ter pouca pressão de ar. É assim mesmo, respondeu o motorista com jeito de tropeiro.
Fui no banco da frente junto com o Davi e o motorista. Alexx, Joarez e PW no banco de trás, fazendo algazarra. Na primeira curva o Jeep se inclinou demasiadamente pro meu lado. Sem emoção porra! Eu relembrei enfaticamente ao condutor de mulas, digo, ao motorista. Pouco antes de chegarmos à portaria do Parque Nacional da Serra do Caparaó, ouvimos um forte estalido vindo de algum lugar do Jeep. Pensei que seria mola quebrada, mas falaram que poderia ter sido ruído causado pela explosão de garrafa pet amassada pela roda do carro. Quando paramos na portaria o motorista abriu o capô e verificou que o estalo havia sido causado por uma pá da hélice do radiador que se partira. Ficamos na portaria enquanto outro Jeep era providenciado.
Para entrar no Parque, preenche-se um formulário e paga-se R$17,00.
Enquanto aguardávamos o novo Jeep mantivemos nossas máquinas fotográfica guardadas com discrição, pois já tivemos notícias de que em certos Parques Nacionais há uma estúpida restrição a fotógrafos profissionais. E a diferenciação pouco inteligente é feita apenas pelo tipo de equipamento usado. Como nossas máquinas são do tipo DSLR, temíamos ser confundidos com profissionais.
Nosso novo Jeep chegou. O estado geral deste era bem melhor do que o anterior. Renovei meu pedido de não emoção e, por poeirenta estrada de barro e beiradas de precipícios, fomos sacolejando até a Tronqueira, onde nos aguardava Claudemir com duas fortes mulas, Caju e Jurubeba.
Caminhamos por 3200 metros em subida relativamente suave até o Terreirão. Com as mulas levando nossa bagagem e, como tudo era novidade, não foi tão cansativo chegar ao local do acampamento. Fazia calor e mantínhamos nossos cantis abastecidos com água cristalina e gelada encontrada à vontade nos regatos próximos à trilha.
No Terreirão, montamos nossas barracas e tomamos as primeiras providências para enfrentar uma noite que certamente traria muito frio. Ao colocarmos todos nossos os mantimentos sobre uma mesa de madeira, percebi que nem só de sede o cearense teme morrer. Era tanta comida instantânea, chocolates, biscoitos, pães, etc que cheguei a conclusão que cearense também tem medo de morrer de fome! A propósito, por uma questão de sobrevivência e apesar da proibição, contrabandeei rum Captain Morgan dentro de uma embalagem de 250ml de Listerine de rótulo alaranjado. Antes mesmo da viagem alertei aos amigos que eles também deveriam fazer algo parecido com conhaque ou até cachaça. Todos esqueceram. Tive vontade de vender cada cobiçada dose de rum por simbólicos R$50,00…
Ao entardecer fomos fotografar o sol poente, descobrindo caminhos entre a mata nas elevações em torno do Terreirão. Dependendo do ponto de vista, a fumaça proveniente de diversos pontos de queimadas que divisávamos do alto, poderia ajudar ou atrapalhar as fotos. A luz estava belíssima.
(Texto do Alexxandre)
Esse foi o momento Puuuuta que pariu, pois a luz estava tão bonita, o sol tão bem localizado, a paisagem tão a nosso favor que, a cada foto, ouvia-se essa expressão da boca de alguém ao conferir o resultado da tomada.
Escureceu e eu e PW tentamos fazer fotos de longa exposição. Joarez e Alexx ao circularem com suas lanternas de testa ligadas conseguiam xingamentos de quem estava como diafragma da máquina aberto e, portanto, com a planejada imagem estragada. Tive a expectativa de encontrar um céu mais estrelado por conta do ar rarefeito da altitude, mas não foi exatamente isso que vimos. Talvez em razão da bruma de fumaça que pairava na região. Tenho visto melhores céus com estrelas na praia de Peroba.
Com o Captain Morgan ajudando, fizemos mais algumas fotos com longas exposições quando os dois sabotadores se recolheram às barracas, levando suas malditas lanternas. Dentro da barraca, com gorro na cabeça, três meias, duas calças e mais umas três camisas e agasalhos, entrei no saco de dormir para tentar um cochilo antes de nos aventurarmos ao Pico. À esquerda da minha barraca, Davi roncava, Claudemir parecia um jumento zurrando e Joarez um moinho de pedra (e disse que não dormiu!). Eita povo pra roncar. Silêncio só à minha direita, onde estavam PW e Alexx.
Combinamos que na hora de partirmos rumo ao pico, às 02:00h, caso alguém relutasse em sair da barraca por conta do frio somado à letargia do juízo entorpecido pelo sono, desistindo da escalada, seria retirado à força e aos tapas da barraca.
Não tinha Captain Morgan que desse jeito, o frio não me deixava dormir. Não encontrava conforto em nenhuma posição e nem eu tinha ânimo para me agasalhar mais. Uma vontade distante de fazer um xixizinho era bloqueada pelos gritos de frio que ouvi dos que foram molhar o mato antes. Ah uma garrafa pet vazia aqui dentro da barraca, eu sonhava… Finalmente, lá pela uma da madrugada, e eu pensando já ser perto de duas horas, saí para um pipi depois de tomar uma lapada de rum. Nem estava tanto frio assim, quiçá uns cinco graus, já que os termômetros que levamos não funcionavam. PW também não dormira e resolvemos ficar enrolados nos sacos de dormir, apenas com a cabeça fora das barracas e máquinas nos tripés para tentarmos fotos de longa exposição sem perigo de luzes circulando no ambiente. Foi muito mais confortável do que tentar dormir!
Dia 11/09/2012 Terça Feira
Claudemir parou seu ronco brutal e saiu da barraca para nos avisar que era hora de encararmos a subida ao pico. Tomamos capuccinos e café solúvel e nos preparamos para a subida.
Com lanternas acesas na testa, mochilas nas costas levando cantil e equipamento fotográfico, enxergando apenas onde colocávamos os pés, em pedras e batentes que não acabavam mais, começamos a caminhada. Não era como um trekking como imaginamos ao ver fotos do lugar antes da viagem. A subida era íngreme e forte, com muitos degraus de pedra a serem vencidos, quase escalada mesmo. Minha respiração ficou ofegante muito rapidamente e eu comecei a me sentir velho e acabado. Cada passo era um evento. As paradas para descanso eram curtas e seguir em frente e acima era essencial. O sol não espera! Os poucos momentos de caminhada em terreno limpo e sem grande aclive também serviam de descanso.
Joarez e Davi pareciam ir bem, caminhando bem próximos ao guia, um pouco à frente. Alexx também parecia não sentir muito a subida e ficou como elo de ligação entre eu e PW, que ficamos um pouco atrás. PW por um momento perdeu a cor, mas se restabeleceu rapidamente tomando uma garrafa de Gatorade. Tomei apenas um golinho dessa gororoba e não senti diferença nenhuma. Mais um pouco, acertei o ritmo de minhas passadas e tanto a respiração quanto o batimento cardíaco de estabilizaram. Teria eu sentido algum efeito da rarefação do ar?
Claudemir nos alertava sempre que conversávamos nos momentos de descanso. O sotaque era mineiríssimo: Pssuá, ocês tão falando dimais e vão perder o fôrgo, uai. Guardem o ar qui daqui pra frente vai piorá inda mais. O sor num ispéra, uai. Alexx virou especialista em imitar a fala do nosso competente e bacana guia de montanha.
Dos cerca de 3,5 mil metros e três horas de subida acho que o último quinto foi o de aclive mais acentuado. No entanto, por volta das cinco horas galgamos o Pico da Bandeira a tempo de ver o sol coroando e multicolorindo o horizonte do dia nascente antes mesmo de se erguer do manto de algodão de nuvens que o escondia.
O forte e gélido vento nos deixava meio atordoados. Acho que a sensação térmica era de algo abaixo de zero. Fugindo do torpor, deitei-me de barriga numa pedra e comecei a fotografar, meio sem rumo ou técnica, mas comecei a fotografar. De repente a bateria da minha nikon acabou e tirei as luvas para substituí-la. Ao completar a operação senti minhas mãos doloridas de frio. Doíam tanto que o jeito foi me aquietar um pouco colocando as mãos novamente enluvadas nos bolsos para buscar um calor extra, concentrando-me, por um momento, apenas em apreciar a paisagem e o belíssimo momento.
(Texto de Alexxandre)
O vento era muito forte e constante lá em cima. Mesmo com todo o corpo agasalhado, a sensação era de que o calor gerado pela pele não era capaz de se manter sob a roupa. A sensação térmica era algo que nunca havia sentido antes. De doer, realmente. Nesse momento, apesar da vista espetacular, eu só lembrava do calor amigável do Ceará. A única coisa que conseguia pensar era em tentar me proteger em uma espécie de pequena fenda atrás de uma pedra contrária ao vento. O saco de dormir de emergência que havia levado na bagagem simplesmente se despedaçou ao entrar em contato com a pedra ao ser açoitado pelo vento.
A caminhada e a altitude devem ter provocado alguma alteração mental no Davi. O cabra, ao chegar ao Pico, afastou-se um pouco de nós (felizmente) e cantou o hino de um time de futebol, acho que do Vasco da Gama e depois, achando pouco, aos brados e gesticulando muito, tentando colocar seus gritos acima do vento, como um ensandecido, começou berrar palavras de ordem e a xingar torcedores de algum time de futebol, acho que xingava corintianos ou palmeirenses. Parecia que estava num estádio, junto com grupo de fanática torcida organizada. Cada maluco… Passados uns cinco minutos de crise, ele voltou ao normal e tornou a se unir ao grupo, como se absolutamente nada houvesse acontecido.
PW esqueceu do frio e do vento e começou a fotografar empolgado. Joarez deitou-se enrolando-se num cobertor ao lado do Claudemir e ficou tão quieto que tivemos de chamá-lo para sair do torpor em que se encontrava. Alexx, depois de tentar se enrolar num saco de dormir de alumínio, desistiu depois de ver sua pretensa proteção toda despedaçada pelo vento e juntou-se ao PW cuidando de capturar boas imagens. Depois que minhas mãos melhoraram juntei-me aos amigos fotografando tudo que via em todos os ângulos possíveis.
(Texto do Alexxandre)
Esse foi o momento em que o frio começou a nos dar uma pequena trégua, pois o Sol já estava no horizonte e sua luz, carreando um calor muito bem-vindo, nos acalentava e nos dava ânimo para fazer o que tínhamos nos programado para fazer lá em cima! Era hora de fotografar pra valer!
Uso uma lente que acredito ser bem versátil para quem viaja de moto, uma Sigma 18-250mm. Lá no Pico se usasse uma tele em 250mm teria apenas uma grande bola vermelha alaranjada e nuvens abaixo, coisa que se pode fazer de qualquer janela de avião. Se usasse a angular, 18mm, teria um pouco da montanha, um mundão de nuvens e uma bolinha avermelhada bem distante que seria o sol. Nas medições entre um extremo e outro, fui trabalhando velocidade, abertura, balanço de branco e ISO para ver o que conseguiria. Ainda não estou certo, mas creio que minhas melhores fotos são aquelas em que incluí outros elementos na imagem, fotografando os amigos e as elevações próximas como o Pico Cristal e Pico do Calçado.
Detalhe; enquanto havia toda essa nossa movimentação no Pico da Bandeira, nosso guia Claudemir dormia profundamente todo enrolado num saco de dormir.
(Texto do Alexxandre)
Nós já havíamos sido brindados com uma linda noite estrelada e com céu suficientemente limpo (possível, inclusive, de se perceber a Via Láctea com sua nuvem de estrelas estirada logo ao centro) e naquele momento estávamos sendo agraciados com um belo dia de Sol. O visual lá em cima, no ponto mais alto, onde há o cruzeiro, é algo estarrecedor. Você olha para o leste e pode contemplar o Espírito Santo. Logo atrás de você, a Oeste, Minas Gerais te ampara. A altitude é tanta que você vê as nuvens lá em baixo com uma certa miniaturização. É impressionante. Uma espécie de tapete de algodão se estendia por toda nossa volta. Lá em cima, é grandiosa a sensação de paz. No momento em que todos os amigos se sentaram para aguardar o Bom Dia de nosso astro rei, a trilha sonora era silenciosa, mas estava lá, no coração e na cabeça de cada um de nós. Suave como a melodia de um grupo de cordas sendo gentilmente regido, preparando e direcionando nossos ouvidos ao clímax com o rufar de tambores e French Horns. Fora um momento de reflexão, de conquista e de satisfação, apesar do frio.
Antes da descida, lembrei-me de um poema do Fernando Pessoa, cujo fragmento recitei de memória lá no alto:
Mestre, meu mestre querido
Que nem uma coisa feriu ou perturbou
Natural como o sol, fazendo seu dia involuntariamente
Natural como um dia, mostrando tudo
Mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade
Meu coração não aprendeu nada
Meu coração não é nada
(
)
E por que me levaste para o alto da montanhas
Se eu, menino das cidades da planície
Não sabia respirar.
(…)
Dia claro e sol já alto, começamos a descida. Ainda fazia frio, porém a encosta nos protegia do forte vento gelado. Descer exige menos preparo físico e muito mais cuidados com torções nos tornozelos e joelhos. Era preciso cuidado e ficar atento a cada passo. Depois de meia hora descendo, ao olharmos o caminho que fizemos na subida, percebemos o quanto foi difícil a escalada na madrugada. Acho que daria para pensar em desistir caso tivéssemos visto o quanto íngreme era a encosta da última etapa da trilha.
Desci calado, apreciando cada detalhe do lugar. No entanto, durante toda a caminhada ouvi acirrada discussão sobre Canon e Nikon, daquelas meio fanáticas tipo Honda ou Yamaha?, e sobre o uso do P ou dos ajustes manuais (M) das máquinas. Nunca vi um nikonzeiro tão fanático quanto o Davi e nunca vi um ajustemanualzeiro tão arraigado quanto o Alexx. Hehehehehe
O pés me doíam um bocado. As três meias dentro da bota dobravam meus dedos a cada passada sobre as pedras inclinadas. Alexx sentiu o joelho doer e precisou do apoio do cajado cedido pelo Claudemir. O meu joelho, que já não é muito bom, resistiu bem, felizmente. Já próximos ao Terreirão, encontramos um montinho de pedras colocadas cuidadosamente umas sobre as outras e me lembrei de minhas leituras sobre escaladas ao Everest. Em tributo e agradecimento à Montanha, apanhei uma pedra e a coloquei bem encaixada sobre as demais. Os amigos também repetiram o gesto. Mais de duas horas e meia de caminhada estávamos de volta ao Terreirão. Cheguei, como se diz em cearêz, com os pés quengados.
Dentro da barraca abafada, tirei as botas e massageei os pés com hidratante. Ainda havia bons quilômetros para descer até a Tronqueira. Caminhei até um regado e deixei os pés na água gelada por uns 15 minutos. Pronto! Milagrosamente os pés ficaram zerados.
Acampamento desmontado. A imensa quantidade de provisões não utilizada devidamente doadas ao guia, bagagens nas mulas e estávamos prontos para descer à Tronqueira. Eu pagaria 50 contos por uma latinha de cerveja naquela hora… Acabava de chegar ao local um casal com vistoso equipamento fotográfico. Entabulamos boa conversa com eles, que já tinham idade provavelmente acima dos 60 anos e não desejavam passar do Terreirão. Viajavam o mundo numa Triton-home, uma camionete Mitsubishi Triton equipada com um habitáculo completo na carroceria. O próximo destino deles será o Alasca, mas antes passariam por Fortaleza e praias do Ceará. Esperamos recebê-los em nossa cidade e praias.
A descida até e Tronqueira foi mais longa do que eu imaginava. A paisagem já conhecida e o calor me deixavam ansioso para chegar. Parei para algumas fotos porque o Alexxandre, por conta do joelho avariado, sem notar, arrastava uma perna e deixava poeira para eu comer. O Jeep já nos aguardava quando chegamos por volta das 11:30h. Era o mesmo que tinha quebrado a hélice do radiador na tentativa de subir, mas com outro piloto, que mais lembrava um vaqueiro aposentado.
Agradecidos, acertamos os R$400,00 do serviço do guia Claudemir e do aluguel das mulas, que tão bem nos serviram. Fizemos fotos de despedida e entramos no Jeep. Eu, sempre temeroso com esses carros velhos, perguntei pelos freios e lembrei que não gosto de fortes emoções com outros ao volante. Não tem jeito, nunca consigo deixar de visualizar uma coisa daquela sem freio e sem controle rolando com a gente montanha abaixo. Tenso! Nunca vi se usar tanto freio motor quanto o que foi usado naquele jeep na descida. O motor gemia e berrava, mas segurava o trem.
(Texto do Alexxandre)
Vale lembrar que o Jipe era equipado com um valente motor 6 Cilindros a gasolina, 4.9 litros, adaptado de uma Ford F-250 e condicionado a funcionar com carburação Weber. Era uma verdadeira usina. O escapamento era feito sob medida para ele e tinha a sua vazão facilitada, o que promovia um lindo som. E com o motor funcionando sob carga constante, tanto na subida como na descida, a compressão em alta, o ronco do motor era ainda mais bonito. Valente Willys!
Felizmente chegamos todos inteiros na pousada. Bagagem descarregada, cervejas nos copos para lavar a garganta e matar a sede, fomos tomar banho enquanto nosso almoço especial era preparado pela Rilza, mulher do Rui.
Foi uma refeição farta e deliciosa. Acho que a melhor e mais substanciosa refeição de toda a viagem. Viva a culinária mineira!
Nos despedimos do Davi, que tinha um compromisso em Cachoeiro do Itapemirim naquele mesmo dia, e nos recolhemos aos apartamentos. Nossas carcaças estavam precisando de descanso.
Acordei desorientado no tempo e no espaço. Como não tenho costume de dormir durante o dia, não tinha ideia de que horas eram e aonde estava. Ao ver na outra cama o Joarez a roncar mesmo deitado de lado compreendi aonde estava. Olhei o relógio para saber se ainda era dia ou madrugada. Era quase seis horas da tarde. Levantei-me e fui cuidar de arrumar a tralha para o dia seguinte, tudo parecia um tanto bagunçado. Dei um jeito de sem querer acordar o Joarez e fui ver o que os canonzistas faziam. Abri a porta do apartamento deles, que não estava trancada, e me deparei com uma cena que mais parecia uma feira de troca troca ou um bazar de antiguidades tamanha era a quantidade de coisas espalhadas no chão e sobre as três camas não ocupadas. Como ainda dormiam, deixei-os em paz.
Demorou um tempo para ressuscitarem… mas logo nós quatro estávamos conversando animadamente e pensando em como preencher a noite que começava. Rui sugeriu um restaurante por perto, mas alertou que não serviam cerveja. Não, este não presta, concordamos. Não queríamos encher a pança, o almoço ainda nos sustentava bem. Petiscar e tomar umas cervas era a ideia. Desta forma, ficamos na pousada mesmo, vendo as fotos recentes no laptop do Joarez, jogando conversa fora e postando algumas imagens no Facebook. Como petiscos para acompanhar geladíssimas cervejas, Rui providenciou porções de queijo, de mandioca frita cremosa no miolo e de especialíssima linguiça caseira que só encontramos em Minas Gerais. Tudo fruto da produção da fazenda de café e gado que o Rui possui.
Dia 12/09/2012 – Quarta Feira
Dia seguinte, ainda com a sensação de que minha bagagem continuava uma bagunça generalizada, arrumamos o material de acampamento, roupas que não mais usaríamos e demais tralhas sem uso previsto e as enviamos pelo correio. A bagagem inútil do Joarez era tamanha que ele pagou de tarifa postal o dobro do que cada um de nós pagou. Gastei R$50,00 para enviar a sacola que ficava no lugar da garupa na minha moto. Com isso, aliviamos em pelo menos 20kg o peso da bagagem das motos.
Contas acertadas com o Rui R$40,00 por diária de apartamento, mais uma diária coletiva para a guarda das nossas coisas e motos na noite da escalada, serviço dos jipes e mais sei lá quanto de refeição, petiscos e cervejas. Ah, e alguma mixaria de água e refrigerante, veneno que o Alexxandre toma no lugar de cervas e que o PW também se arrisca a beber vez por outra. Acho que deu um total de R$500,00.
Saindo de Alto Caparaó, rumando para a estrada mais ou menos as 11 horas da manhã, paramos numa loja para compra de lembranças. Com objetividade, compramos o que nos interessava, pagamos e, quando já estávamos indo para as motocicletas, PW resolveu também fazer compras, porém, indeciso, resolveu pegar o telefone e consultar MW, sua saudosa esposa. Todos com calor e ansiosos para pegar estrada. Alexx e Joarez foram esperar num posto mais à frente. Fiquei na moto, aguardando meu amigo e nada. Desliguei o motor, tirei o capacete, desci da moto, voltei à loja, olhei prateleiras e nada. PW continuava ao telefone… Tirei a jaqueta, tomei café num boteco vizinho, acendi um cigarro e nada. Eita comprinha complicada da peste! Acho que o PW nem notou que estávamos exasperados.
Quando se viaja em grupo é fundamental que façamos uma boa combinação de roteiros, distância entre paradas, velocidade padrão, lugares a serem visitados, faixa de custo em hotéis e pousadas, etc. Feito isso, durante o trajeto temos que respeitar os limites e os hábitos de cada parceiro de estrada. Todos nós temos nossas idiossincrasias, manias e costumes. Para um grupo de amigos fazer uma viagem unidos e ao fim, retornarem ainda mais amigos, é preciso ceder, compreender e respeitar a individualidade e as vontades momentâneas. De outra forma, ao fim a viagem, em vez de amigos teremos inimigos. Não saberia dizer qual mania ou costume meu pode ter se destacado nesta viagem. Deve haver muita coisa… sou grato por me suportarem!
(Texto do Alexxandre)
Aqui eu posso descrever que a única mania do Luiz que pude perceber durante toda a viagem é que ele sempre, sempre mesmo, repete a mesma piada quando chega em um posto de gasolina para abastecer. A piada não tem graça, mas se torna engraçada depois de você ouvi-la seis, sete, doze vezes, em alguns dias seguidos. Ele chega e primeiramente pergunta ao frentista se a gasolina é cristã ou pagã. Muitos frentistas não entendiam de imediato a malícia incuta na pergunta. Daí, ao se dar conta do batismo, com um tom meio desajeitado, o frentista jurava de pés juntos que ali era tudo de confiança. Ainda não satisfeito, após iniciar o abastecimento, o frentista era coagido com a seguinte advertência: Se derramar um pinguinho que seja no tanque, eu não pago a gasolina. Tá avisado. Porque uma vez derramaram…. e aí ele repetia de novo a história da sua antiga Shadow que havia sido brindada com um banho de gasolina e blá blá blá. O engraçado da história era que o pobre do frentista ficava nervoso, tenso, com o gatilho da bomba de abastecimento tremendo e com todo aquele cuidado de não deixar nem uma gotinha espirrar na pintura do tanque. Tenho que concordar que o método funciona. Mas não precisava tanto. Afinal de contas, nossos tanques de combustível estavam protegidos com plástico do tipo Contact para evitar os arranhões que poderiam ser causados pela mala de tanque que tem sua fixação através de magnetos que ficam em contato com o metal do tanque. Se espirrase gasolina, era só passar um pedaço de estopa no plástico e ficava tudo novo de novo!
Refizemos o caminho de volta à BR 262, rodando por cerca de 50km e passando novamente por aquelas mesmas irritantes lombadas em sequência. Na BR, seguimos em direção ao leste, rumo a Vitória. Bela estrada com tráfego moderado (pelo menos em relação à Rio-Bahia), boas curvas e abundante mata atlântica nas margens. Fomos apreciando a estrada por 126km até que chegamos a Pedra Azul, distrito longínquo de Domingos Martins, ES, cuja sede fica a mais de 50km de distância.
Distrito de Pedra Azul do Aracê, a 1100m de altitude, tem 8 200 habitantes, muitos descendentes de alemães, italianos e pomeranos. Conta-se que o clima da região foi considerado pela ONU o terceiro melhor do mundo, – por favor, não me perguntem o critério – chegando aos 30 graus durante o dia e a abaixo de 10 graus à noite. Percebi na população local um certo desejo de emancipação política em relação ao município de Domingos Martins.
Paramos em um posto bacana e, enquanto solicitávamos informações sobre pousadas na região, percebemos que estávamos no posto em que havia uma pousada que era exatamente a que foi recomendada pelo m@diano Davi. Posto Petras e Estalagem Petras, nome este porque suas paredes eram todas de pedra. PW foi examinar as instalações e voltou dizendo que havia bom e espaçoso apartamento com quatro camas. -Isso já não é apartamento, com quatro camas está mais para alojamento, disse eu, concordando em ficar ali mesmo, enquanto terminava de abastecer a moto. O consumo registrado dessa vez foi de 23,4km/litro.
Não havia café da manhã, mas havia a loja de conveniência que abria as cinco horas da manhã. Não havia garagem fechada para as motos, mas elas ficariam bem estacionadas e bem perto das nossas acomodações e, além disso, haveria vigia noturno, quando o posto encerrasse as atividades a partir nas nove da noite. O custo era de 35 contos por pessoa. Tá bão dimais, uai!
Deixei no apartamento, digo, alojamento apenas a jaqueta, luvas e o bauleto da moto. Como já passava das duas da tarde, fomos em busca de um local para almoçar. Encontramos, três km à frente, o restaurante Peterles, onde fizemos uma ótima refeição, ao custo de 17 reais por pessoa sobremesa incluída, cujo bufê livre, oferecia tanto pratos da cozinha capixaba quanto da cozinha mineira. Não posso deixar de lembrar que era oferecido aos clientes uma cachacinha especial para abrir o apetite e um saboroso licor de morango como digestivo.
(Texto do Alexxandre)
Assim como o gostoso refrigerante de Guaraná COROA, comercializado, aparentemente, somentena região do Espírito Santo. Uma delícia.
Fomos fazer a digestão passeando na Rota do Lagarto, também recomendação do Davi. Beleza de passeio! São sete quilômetros de estradinha, parte de paralelepípedo, parte de lajotas de concreto e parte de asfalto, cheia de curvas e paisagens deslumbrantes. Paramos a todo momento para fotografar. A estrada contorna a região ao largo da Pedra Azul, formação rochosa de granito e gnaisse, cujo cume alcança 1822m de altitude. A pedra Azul também é conhecida como Pedra do Lagarto em razão de uma saliência em sua encosta que lembra um calango. A estrada segue, sempre dominada pela Pedra, passando sinuosamente por fazendas, pastos, casas de campo, pousadas, haras e condomínios. Tudo isso ladeado por exuberante vegetação e pinheirais.
(Texto do Alexxandre)
As casas, em sua maioria, apresentam arquitetura europeia, com gramados e jardins bem cuidados e ornamentados. Inclusive com telhados ora ostentado gramados suspensos, ora sendo o próprio gramado no papel de telhado. Os funcionários da região têm todos aspecto físico de descendentes de europeus, olhos claros, cabelos claros e pele clara. A sensação é de que não se está no Brasil. O clima, bastante ameno, ajudava a coroar a tarde de belas fotografias e agradável passeio. Estávamos fazendo Turismo de verdade.
A Pedra Azul, tem essa denominação devido ao fato, de que dependendo da incidência da luz solar, pode mudar de cor, ficando por não raras vezes de cor azul ou esverdeada e até mesmo com tons amarelos. Entretanto, a maior parte do tempo fica num tom azul/acinzentado. Há quem diga que a pedra chega a mudar de cor 36 vezes por dia! Preciso voltar lá para conferir isso fotograficamente…
(Texto do Alexandre)
Aproveitamos para um andar na moto do outro e experimentar as diferenças entre as motos. Além disso, a estradinha nos favorecia um cenário ideal para fotografarmos as máquinas em movimento, com folhas caídas à beira da estrada e os raios do sol por entre os galhos nos servindo de alegorias. Havia imensos pinheiros que ladeavam a estrada e serviram de moldura para fotos de máquina e piloto. Oh, tarde bonita.
Passeamos e fotografamos fartamente a Rota do Lagarto até escurecer. Retornamos à estalagem, cuidamos das arrumações gerais e fomos para o caramanchão ao lado da loja de conveniência do posto tomar cerveja com petiscos, já que não somos de ferro. Alexxandre ainda insistia em tomar apenas o veneno, refrigerante. Um dos petiscos foi novidade para mim; torradas crocantes feitas de pão de queijo. PW providenciou charutos e pronto, estávamos todos felizes da vida, curtindo um friozinho gostoso e conversando sobre filosofia, história da humanidade e demais assuntos correlatos. Quando soubemos que aquela mordomia tinha hora para acabar, já que a loja fecharia ás nove horas, solicitamos providências para que um balde grande repleto de latinhas de cerveja e coberto com farto gelo nos fosse disponibilizado. Assim foi feito. Um simpático funcionário da loja prontamente nos atendeu e continuamos nossos colóquios eruditos até a última lata.
Já deitado, Joarez, com os pés esfolados das caminhadas na Chapada Diamantina somadas com as do Pico da Bandeira, mereceu o seguinte comentário do PW: -Joarez, essa quantidade toda de esparadrapos e demais curativos que tu está usando mereceria uma lixeira especial para lixo hospitalar!
Dia 13/09/2012 Quinta Feira
Cedinho montamos nas motos e fomos tomar café da manhã numa padaria próxima. Café, leite e pão com manteiga para mim está de bom tamanho. Mas o povo tem que ficar pedindo bolinho disso e daquilo, presuntinho light, biscoitinho e mais e mais comidinhas que perdi a paciência e fui fotografar a passarada que comia xerém na frente da padaria enquanto os amigos se alimentavam.
Refizemos o passeio pelo Rota do Lagarto, dessa vez com o sol em posição diferente e aproveitando a bruma matinal. No caminho de volta entramos no Haras Fjord, onde se cria cavalos da raça de mesmo nome, único haras da raça no Brasil, e se toma cafés especiais. Um gramado substitui as telhas em todas edificações do lugar muito bacana. Enquanto Joarez foi cavalgar pelas trilhas locais, Wagner, responsável pelo salão de café, tendo apenas nós como clientes, nos deu uma soberba aula sobre café, seu cultivo e preparo. Tomei ali o melhor capuccino que já experimentei na vida. O Haras Fjord, segundo Wagner, pertence a uma princesa da Noruega, irmã do rei daquele país.
Concluído o passeio, arrumamos as tralhas nas motocicletas, acertamos contas e partimos rumo a Vila Velha, de onde já havia recebido telefonema do Brazil Riders Rui, informando que outro motociclista Brazil Riders estaria nos aguardando no posto da PRF na entrada da cidade por voltas das duas horas da tarde.
A estrada prosseguia uma beleza, mas com muitos treminhões e muitas curvas perigosas. Entrei à direita em um lugar chamado Vista Linda, onde eu havia estado em 1988. Fazia calor e os amigos ficaram em volta das motos, sob a sombra de algumas árvores, meio amuados, aguardando que eu retornasse depois de fotografar o que eu queria. Imaginei, equivocadamente, que eles gostariam de conhecer e fotografar o lugar, pois de certas posições, além de ampla visão da estrada cortando a serra, pode-se ver o mar. Sem mais demora retornei ao grupo e, entre enormes caminhões exalando forte cheiro de freios queimados e difíceis ultrapassagens, descemos a serra no trecho da BR 262 conhecido como estrada da morte.
(Texto do Alexxandre)
O calor já estava ficando insuportável, nos obrigando a abrir um pouco o zíper da jaqueta e um dedinho da viseira do capacete.
À sombra de uma mangueira em frente ao posto da Polícia Rodoviária Federal, aguardamos por pouco tempo a chegada do Barney, que foi nos buscar, juntamente com sua mulher, Rosângela, e nos conduziu em segurança, porém debaixo de um calor de mais de 39 graus, até o Hotel Champagnard, pertencente também a um motociclista Brazil Riders. O Geraldo. Antes de chegar ao hotel ainda tentamos providenciar a troca de óleo das motos, porém na oficina que o Barney nos levou não foi possível sermos atendidos.
A propósito, saímos do tradicionalmente quente Ceará e fomos para a Região Sudeste em pleno inverno para pegar um calor bem maior do que o que faz em Fortaleza? Pedimos cervejas logo na recepção do hotel! Nos instalamos bem, em apartamentos duplos. Dessa vez nikonzeiros misturados com canonzeiros.
Conversávamos com o Geraldo, dono do hotel, quando pedi licença para atenter uma ligação telefonica de Fortaleza, do Nestor, meu irmão. Quando conclui o telefonema e retornei ao local do bate-papo, não havia mais ninguém. PW contou-me que Geraldo levou Joarez e Alexx para trocar o óleo das motos numa revenda Suzuki. Era para eu ter ido junto… a GS800 não precisava trocar óleo. Mais tarde soube, aliás, que fui o corno da estória, o último a saber, que Alexx e Joarez haviam combinado, na calada de uma noite qualquer, que antecipariam o retorno e sairiam para Fortaleza na madrugada seguinte. Traíras! A atenuante é que ambos têm criança pequena em casa, Lelê e Janjão.
PW e eu aproveitamos o resto de dia para conhecermos o Convento da Penha, que dava para ver do hotel e parecia não ser longe. Seguindo uma lógica… erramos o caminho… Mas fomos perguntando e logo estávamos numa acentuada subida de calçamento cheia de curvas, a caminho do Convento, de cuja localização se vê toda Vila Velha e Vitória, ligadas por uma grande e bonita ponte. As portas do interior do Convento fechavam-se às cinco da tarde. Era dez para as cinco quando chegamos e as encontramos fechadas. Curiosa a mão determinadas aos pedestres nas escadarias. Ora é para subir pela esquerda ( e reclamei de umas mulheres, acho que freiras, que desciam pela esquerda), ora é para subir pela direita…
O tempo virou no final da tarde. Do calorzão de rachar começou um brisa fresca e virou quase um vendaval. Do alto do convento vimos urubus voarem brincando de imitar andorinhas. Palmeiras se vergavam com a força da ventania. Tivemos que nos segurar nas amuradas para não sermos empurrados pelo vento. Ventania bonita!
Será que nossas motos ainda estão em pé? Perguntei ao PW quando começamos a descer. -Arre égua Luiz, isso é pergunta que se faça?, foi a resposta do PW. Felizmente nossas motos estavam bem estacionadas e resistiram bem. Soube depois que o vento chegou a 85km/h e que por pouco a ponte não foi interditada. Na volta ao hotel, seguindo a lógica de que se pegarmos à esquerda e depois novamente à esquerda retornaremos ao o lugar de onde viemos, nos perdemos e, totalmente desorientados, recorremos a perguntar aos pedestres sobre como chegar à Avenida Champagnard, onde fica o hotel. O problema, a desorientação, foi que a avenida muda de nome…
No hotel, recebemos a visita do Romildo, Conselheiro do Brazil Riders no Espírito Santo. Tivemos uma ótima conversa e ele nos recomendou dormirmos em Pedro Canário, ao invés de São Mateus, como planejado. É que em Pedro Canário haveria um Encontro de Motociclistas organizado pelo Buru, Master BR.
Contraditoriamente Rui e amigos nos levaram ao restaurante Recanto Baiano para jantarmos uma Moqueca Capixaba… deliciosa, mas peixe e camarão ao molho de tomate e colorau, apenas (risos). Depois do jantar, os traíras, digo, os dissidentes, foram para o hotel e eu e PW acompanhamos o Rui no encontro semanal de motociclistas que ele frequenta. Conversamos muito, conhecemos novas pessoas, por fim, uma boa noitada.
Dia 14/09/2012 Sexta Feira
Tomei café da manhã cedo e cuidei de, sozinho na cidade, descobrir um local confiável para trocar o óleo da minha moto. Uma coisa chata é viajar com motocicleta que pede troca de óleo a cada três mil quilômetros… Encontrei um lugar para fazer a troca, e em frente, uma loja que vendia óleo Motul. Se possível, evito trocar o filtro do óleo em viagem que necessite apenas de uma troca do óleo. O problema era que o mecânico, ex-caminhoneiro, conhecedor das estradas desse vasto Brasil, não parava de falar, de contar sobre suas viagens e peripécias de norte a sul pelo país, e esquecia de fazer o serviço. Tive que me afastar, tomar um cafezinho, para ver se ele concluia o trabalho. Depois fiquei com uma pulga atrás da orelha; será que ele trocou mesmo o óleo… No hotel fui conferir a janelinha de verificação de nível de óleo e ela mostrava óleo no nível correto e com coloração de óleo novo.
Sem pressa, pois não seria dia de grande pernada, eu e PW arrumamos as bagagens nas motos, lubrificamos corrente, acertamos contas e fomos, antes de pegar estrada, passear nas orlas de praia de Vila Velha e Vitória. Abastecemos as motos e calibramos pneus no porto vizinho ao hotel. O consumo da DL foi de 20,7km/litro.
Não vimos muita coisa. Cidade grande é tudo parecido e tem o trânsito intenso de sempre. Foi muito bom atravessar a Terceira Ponte, como é conhecida a Ponte Darcy Castello de Mendonça, que liga Vila Velha a Vitória. Mesmo com o tráfego estressado, PW filmou tudo e passeamos com certa tranquilidade durante seus 3,3km de extensão. O vão principal tem 70m de altura e 260m de um pilar ao outro, permitindo assim o acesso de navios de grande porte à Baía de Vitória. É pedagiada e motocicletas pagam pedágio de R$0,90 na praça de cobrança, ao chegar em Vitória.
Com as instruções básicas para sairmos de Vitória, fornecidas pelo Rui, memorizadas, passeamos pela orla marítima, fizemos algumas fotos e seguimos atentamente as placas que informavam BR 101 norte. Sem nenhum atropelo ou dificuldade, saimos da cidade. O tempo estava nublado e ameaçava chover.
Paramos para um lanche num lugar chamado Parada Ibiraçu Um Oásis na BR 101, que consiste numa loja de tudo que se pode imaginar, restaurante, lanchonete e tudo mais. Um lugar bacana onde comemos um bom pastel com caldo de cana. Só não comprei um canhão colonial de ferro fundido por conta do pouco espaço na moto. Como já havíamos sido respingados por chuva, aproveitamos para cobrir as malas de tanque, protegendo o equipamento fotográfico.
Foi nas proximidades desta Parada Ibiraçu que cruzamos e cumprimentamos um motociclista solitário pilotanto uma V-Strom 650 azul, com malas laterais, que supomos ser o mesmo que dias antes encontramos na BR 116.
A chuva nos encontrou mais à frente, no entanto, logo nos deixou em paz e pilotamos no asfalto seco o resto do dia. Belo trecho este da BR 101. Asfalto bom, muitos eucaliptos, mata atlântica e criação de gado. O tráfego de caminhões era moderado e pudemos curtir a paisagem sem grandes preocupações. Em São Mateus fizemos um parada para descanso e abastecimento. O consumo da minha moto foi de 22,4km/litro.
Ao chegarmos a Pedro Canário, quase divisa entre ES e BA, paramos para um café em um posto e logo Marcos Buru nos encontrou. Conversamos um pouco, visitamos o clube ,local da festa que haveria à noite, e fomos levados ao hotel Apides Palace, muito bacana, possuindo salão de convenção, amplo refeitório, piscina e demais instalações adequadas a eventos empresariais. O dono do hotel, também motociclista, nos recebeu com muita atenção e ficamos bem instalados em apartamento duplo ao custo de R$120,00.
Recebemos ligação dos dois amigos que partiram as quatro da madrugada de Vila Velha. Haviam chegado a Serrinha, 80km além de Feira de Santana. Quase 1200km rodados em um dia. Uma jornada e tanto!
No Evento fomos muito bem recebidos pelo pessoal local e Buru, que mesmo cuidando de tudo, se desdobrava para atender bem a nós e a todos. Através de um painel, pintado numa parede, alusivo a uma Academia de Karatê, ficamos sabendo que Buru, dono da academia, era faixa preta 3º dan, e o cumprimentamos com o tradicional Osss usado pelos karatecas. Com muita honra, recebemos troféus de presença na festa. Ouvimos rock e bons blues. Nos acomodamos numa mesa mais afastada para possibilitar conversas, ficou conosco o dono do hotel e seu simpático pai, um jovem de 77 anos, que chegou na garupa da moto do filho. Ótimas conversas. Havia combinado com o PW que voltaríamos ao hotel para descansar por volta da dez horas. Qual o quê, estava tudo tão bacana que só fomos dormir lá pela meia noite.
Dia 15/09/2012 – Sábado
Começamos a jornada seguinte com um pequeno desencontro. Eu, já com jaqueta fechada e moto ligada aguardei PW fazer os pequenos ajustes de sempre na sua bagagem. Como o calor começava a se fazer presente, saí um pouco antes dele. Havíamos combinado de parar em um posto onde existe um grande painel de distâncias da BR 101. Fui devagar na estrada e nada do PW aparecer. Cheguei ao posto uns três quilômetros à frente e nada. Resolvi voltar ao hotel. Sabe lá se a moto dele deu problema? Pensei. Quando de volta a Pedro Canário, já entrando na rua do hotel, meu telefone tocou. Era PW, que havia pego estrada na direção oposta pensando que o tal posto ficaria para trás. Ainda bem que ele telefonou, pois de outra forma poderia ter havido desencontro de verdade.
Rodamos sob chuva boa parte da manhã. A maior dificuldade foram as ultrapassagens às carretas; a estrada acumulava água e o spray formado por 12, 16 ou mais pneus não nos permitia ver o que vinha em sentido contrário. É preciso calma e prudência nestas horas. Sob chuva deveria ser obrigatório o uso de faróis acessos… e mesmo que assim fosse, quem confiaria? Cumprimentamos muitos motociclistas que, rodando em sentido contrário ao nosso, dirigiam-se para a festa em Pedro Canário.
Em um determinado momento entre Teixeira de Freitas e Itamaraju, ainda com alguma chuva e asfalto molhado, ao entrarmos no espaço entre caminhões durante uma ultrapassagem, encontramos um motociclista pilotando uma Tornado vermelha. O camarada ao nos ver tentando voltar para nosso lado da pista não abriu espaço. Tudo bem, encontramos nosso lugar em segurança mesmo assim. O cara fazia que ia ultrapassar e não se decidia. Depois de um tempo nos atrapalhando, dei-lhe um chega pra lá, torci o punho direito e fiz minha ultrapassagem, indo embora com PW acompanhando a tocada. Passado algum tempo e muitos quilômetros vejo a Tornadinha e seu piloto de sacos plásticos nos pés no meu retrovisor. Não vou andar perto desse cara, pensei dentro do capacete ao mesmo tempo que torcia um pouco mais o punho. Olhei o retrovisor e vi o cabra na frente do PW e na minha cola. Torci o punho com mais gosto fazendo o velocímetro marcar 140 km/h e comecei a entrar forte nas curvas. E como a Struminha é boa de curvas! A tornadinha se afastava mas não saía do retrovisor. Fiz mais algumas curvas deliciosamente fortes e a tornardinha não sumia. Antes que o cabra da moto vermelha se matasse tentando me acompanhar reduzi a velocidade para que esse maluco – ou exímio piloto – seguisse seu rumo longe de nós. Pouco mais à frente o cabra saiu da estrada, pegando outro rumo, nas proximidades de Itamaraju.
Em Itamaraju abastecemos as motos (20,7km/litro) e tiramos as sobreluvas de borracha verde ridículas, porém úteis – que colocamos quando começou a chover. Não seria mais necessárias, o céu havia limpado.
Estávamos na região cacaueira. Como a cultura do cacau necessita de sombreamento, a Mata Atlântica da região é muito bem preservada. Uma beleza pilotar entre os túneis verdes formados pela exuberante vegetação nativa. O que é de se lamentar é a franca decadência das fazendas de cacau que avistamos da estrada. Tudo por conta da criminosa implantação da vassoura de Bruxa, uma doença que ataca os pés de cacau.
Até meados da década de 20, o Brasil era o maior produtor de cacau do mundo. No final dos anos 80, ainda ocupava o segundo lugar, perdendo apenas para a Costa do Marfim, na África. Hoje, o Brasil contribui apenas com 4% da produção mundial, ficando em quinto lugar em produção e em consumo.
Causada pelo fungo Moniliophtera Perniciosa, a vassoura-de-bruxa tem esse nome porque deixa os ramos do cacaueiro secos como uma vassoura velha. A doença foi descoberta em 1895, no Suriname, e já tinha demonstrado o seu poder devastador ao atingir, em 1920, as lavouras de cacau do Equador.
Quando chegou à Bahia, em 1989, provavelmente vinda da região Amazônica, a praga foi o fim para os produtores baianos, que enfrentavam ainda uma crise com a imensa queda do preço do cacau no mercado internacional. Só para se ter uma ideia dos estragos, a produção, que foi de 390 mil toneladas em 1988, caiu para 123 mil em 2000.
O odômetro marcava 236km quando, ainda na região cacaueira, paramos em Camacã, para abastecimento e lanche. A fome me fez pedir um horrível pastel de carne, molenga e oleoso. Para rebater, pedi a única coca-cola que bebi em toda viagem prefiro beber líquidos cuja receita eu tenha noção, cerveja, por exemplo. Deixei a coca pelo meio e terminei de me saciar com sorvete. Eita lugarzinho ruim de parar. Muita gente barulhenta e péssimo atendimento. Ainda bem o pastel não me fez mal. Enchemos os tanques das motocicletas meio desconfiados. 18,7km/litro foi o consumo da DL.
Fizemos uma rápida parada na barulhenta, fumacenta e movimentada Eunápolis, cidade onde há o entroncamento rodoviário para Porto Seguro e demais cidades da Costa do Descobrimento. Havia caminhões e ônibus por todo canto. Todo mundo ali parece estressado, nem parece que é Bahia. Bebemos água rapidamente e fomos embora daquele inferno. Retornei à estrada depois de rodar um pouco por via secundária paralela. Assim que entrei na pista havia um fotosensor sem a respectiva placa de velocidade permitida. Como estava em velocidade abaixo do 60km/h, não me incomodei.
Continuamos vendo ruínas de fazendas e mata exuberante. Com quase 300km no odômetro e por volta da quatro horas da tarde, paramos para descanso a abastecimento em Lage, proximidades de Santo Antônio de Jesus. O consumo de gasolina da V-Strom foi de 20,8km/litro. Acho que essa variação de consumo, além da forma de pilotar entre um e outro abastecimento, também deve-se à diferença do nível do tanque na hora de encher. Lembrando que sempre digo ao frentista que não pagarei a conta em caso de derramamento de gasolina. Alguns são mais inseguros e a estes eu não insistia que a gasolina chegasse muito perto do bocal. No posto havia movimentação de carros de candidatos (eleições municipais) que faziam muito barulho não sei se discutiam ou trocavam amabilidades. Neste local, buscando informações sobre a chegada em Feira de Santana, fomos alertados para não entrar na cidade logo no primeiro acesso. Na saída ouvi uns gritos que pensei vir dos políticos. Depois PW me falou que eram cumprimentos de uma turma de motociclistas com Varadero e Super Tènèrè num boteco na beirada da estrada.
O sol já havia se escondido quando vi uma pequena placa à direita indicando Feira de Santana. Como havia luzes de cidade à frente, imaginei que aquela entrada fosse a tal primeira entrada, que deveríamos evitar, segundo recomendação obtida no posto. Portanto, seguimos em frente.
A propósito, para BR 101 vale o mesmo comentário que fiz sobre a BR 116 em relação à placas informativas, muito precárias. E em solo baiano, há placas para todas cidades turísticas litorâneas. Para Feira de Santana, segunda maior cidade do estado, nenhuma informação. A não ser a pequena placa, quase, eu diria, uma tabuleta, indicativa de cerca de 20X60cm que vimos.
Esperei por um grande entrocamento bem sinalizado, um viaduto com alças ao cruzar a BR 324, rodovia pedagiada que liga Feira a Salvador, e nada. Como o céu já escuro continuava a refletir luzes de uma cidade adiante, continuei esperando a qualquer momento chegar a Feira. E nada… Examinava o odômetro da moto e estranhava que já tivesse rodado tantos quilômetros a mais do que o esperado para adentrar Feira de Santana.
Depois de algum tempo, depois de quase atropelar um cachorro manco e preto que atravessava a estrada na escuridão, resolvi parar em um posto para perguntar. -De onde vocês estão vindo? Perguntou-me o camarada do posto. -De Cruz das Almas, respondi para resumir. – Então Feira de Santana está 80km para trás.
Kilparyl! Rodamos 80 quilômetros à noite para nada! Fiquei muito p da vida comigo mesmo. Como deixei o odômetro passar tanto? Como não vi os viadutos e alças? Por que não parei para perguntar antes?
PW falou que também viu a pequena placa indicativa para Feira, achou que era a entrada correta, mas imaginando que eu sabia o que estava fazendo, seguiu-me sem me alertar. É aquela tal opinião de autoridade… Quantos aviões já não caíram porque o copiloto não alertou o comandante sobre alguma anomalia, pensando que este sabia o que estava fazendo?
Era perto de oitos horas da noite. O leite já estava derramado e o jeito era resolvermos o que fazer. Concordamos que não valeria a pena voltar naquela hora para Feira de Santana. Como estávamos perto de Alagoinhas, resolvemos pernoitar naquela cidade. Antes vi um placa de pousada na estrada, mas ao observar o bar que ficava junto, desistimos. Ambiente barra pesada. Entramos em Alagoinhas e paramos na primeira pousada que vimos. Só havia uma moça atendendo, mas as motos ficariam em local fechado. PW verificou o apartamento e aprovou. Deixando as luvas com a moça para garantir nossa vaga, fomos em busca de comer alguma coisa. A fome era grande.
Por tentativas, informações desencontradas e contra-mãos, chegamos ao Boteco do Caranguejo. Tomando umas cervas para relaxar, não encontramos nada no cardápio que nos agradasse para jantar, o que havia eram petiscos. Pedimos a uma simpática e novata garçonete uma poção de filés com fritas e duas poções de arroz. Construímos um jantar até razoável.
Joarez e Alexx informaram já ter chegado em casa. Eita Lelê e Janjão para apressarem os saudosos pais!
Dia 16/09/2012 – Domingo
O cansaço me fez dormir bem, ignorando os pernilongos. Tendo duas bolachas água e sal e uma xícara de café com leite como refeição matinal, desci para arrumar as coisas na moto e lubrificar corrente. Vi uma mulher levando pães frescos para o café. Agora é tarde, os pães que vi na hora do meu café estavam cheirando a azedo. Que o PW aproveite.
É sempre longo o retorno depois de um trecho percorrido equivocadamente. Fica aquela sensação de desperdício, de inutilidade. No entanto, logo estávamos contornando Feira de Santana. Abastecemos as motos (22,2km/litro) e entramos de volta na BR 116 no trecho com asfalto frisado entre as bandas de rodagem. Aceleramos rumo a Euclides da Cunha. Paisagem de deserto novamente. O vento vindo da nossa direita era tão forte que ao sair da lateral de um caminhão, numa ultrapassagem, sentíamos pancadas de vento tão fortes que por pouco não desequilibravam as motos.
A cada lugarejo, filas e filas de caminhões por conta das lombadas e dos fotossensores. Nesses momentos ficávamos de pé sobre as pedaleiras para descansar a bunda.
Paramos no maior posto de Euclides da Cunha, onde havia muita movimentação política. Abastecemos as motos (20,20km/litro) e obtivemos algumas informações sobre Canudos. Era logo ali, 60km à frente. Chegando a Bendegó, entramos à direita e passamos a rodar numa novíssima estrada, a BR 235, que rasga esse sertão de ninguém. Era perto de meio dia e o sol brilhava com intensidade no céu nordestino de poucas nuvens.
Rodamos cerca de 10km e entramos à esquerda, em direção ao Parque Estadual de Canudos Cenário da Guerra. No portal de entrada fomos muito bem recebidos pelos dois vigilantes do lugar. Um deles, o Tudi, recomendou que fôssemos à cidade e voltássemos por volta das três horas da tarde. Também recomendou a pousada Por do Sol, de dona Joselina, tia dele. Coincidentemente era mesma pousada recomendada pelo amigo Paulo Guedes, que havia estado em Canudos um ano antes.
Oito quilômetros a mais de estrada e entramos na nova Canudos. Entre erros e acertos e muita poeira chegamos na pousada, que não tem placa com o nome e fica num alto, com vista para o açude Cocorobó, cujas águas abrigam, submersa, a antiga Canudos. Fomos muito bem recebidos pela proprietária, que lembrou do Paulo Guedes e Andréia sua esposa. Nos entregou a chave do portão lateral onde ficava nosso apartamento e espaço para guardar as motos, bem diante da nossa porta.
PW, que creio apenas me acompanhava para cumprir o itinerário previamente combinado, chegou à pousada com um renovado brilho nos olhos. Meu amigo estava deveras empolgado com o que viu e tinha ótimas expectativas fotográficas.
Tiramos a bagagem necessária das motos e fomos almoçar na cidade. Ao chegarmos na churrascaria que nos indicaram, um cidadão, já bem adiantado nos incertos caminhos etílicos, vibrou com as nossas motos. E foi aquele desagradável apertar de mãos que não acaba mais, coisa de bêbo chato. Mas era pessoa de bem, conhecido do dono do estabelecimento, e antes de se retirar, avisou que a cerveja que consumíssemos seria por conta dele. Bêbo gente boa, o cabra!
Depois de almoçar fomos visitar o Memorial de Antônio Conselheiro. Estava fechado. Descobrimos aonde morava o responsável e saimos em busca dele. O encontramos e ele, por diversas vezes, tentou falar por telefone com o vigia para dar ordem de abrir o memorial para nós. Foram muitas ligações infrutíferas até que, depois de meia hora, solicitei que ele nos autorizasse a mandar abrir o lugar. Com o cartão do chefe em mãos retornamos ao Memorial. Foi fácil entender porque o telefone não funcionava. O gentil vigia não largava o telefone. Pelo que ouvimos parecia ser coisa de mulher difícil…
O Memorial de Antônio Conselheiro, administrado pela Universidade Federal da Bahia, é interessante, estão expostos documentos, peças de vestuário dos militares da época, projéteis de canhões e fuzis, armas brancas, fragmentos diversos, etc. Senti falta de artefatos da guerra, tipo matadeira (canhão ou metralhadora na linguagem dos jagunços) que tanto horror causou nas hostes conselheiristas, e que, segundo soube encontra-se em Monte Santo, sem os devidos cuidados.
Do Memorial fomos ao cenário da guerra.
Li Os Sertões, de Euclides da Cunha, quando adolescente. Impressionou-me a terceira parte do livro, A Luta, onde o autor descreve em detalhes minuciosos a crueza dos fatos passados nesta triste página da nossa história. Euclides da Cunha, relata as quatro expedições a Canudos, criando um retrato real da fome, da peste, da miséria, da violência e da insanidade da guerra. A Guerra de Canudos foi vencida com canhões, metralhadoras, fuzis e baionetas, quando poderia ter sido evitada com livros e escolas.
Mário Vargas Llosa, prêmio Nobel de literatura em 2010, autor de A Guerra do Fim do Mundo, novela que narra a Guerra de Canudos, livro que o autor peruano considera sua obra predileta, conta como se sentiu ao chegar no local: “Talvez para mim o dia mais emocionante da minha vida – creio que jamais senti tamanha emoção – foi quando cheguei não a Canudos, porque Canudos jaz hoje no fundo de uma represa, mas ao cenário da grande batalha da guerra, o cerro onde está a cruz que ficava na igreja de Canudos. Alguém a plantou ali, e ainda está cheia de estilhaços de bala. Você não sabe o que significou para mim chegar até lá. Até então, o trabalho de escrever vinha sendo angustiante. Mas daquele momento até terminar o livro, ou seja, mais dois anos, trabalhei com enorme entusiasmo.”
A Guerra de Canudos foi o confronto entre o Exército Brasileiro e os integrantes de um movimento popular de fundo religioso, liderado por Antônio Conselheiro, que durou de 1896 a 1897, na então comunidade de Canudos, no interior do estado da Bahia, no nordeste do Brasil.
A região, historicamente caracterizada por latifúndios pouco produtivos, secas cíclicas e miséria crônica, passava por uma grave crise econômica e social.
Milhares de sertanejos e ex-escravos partiram para Canudos, cidadela liderada pelo beato peregrino Antônio Conselheiro, unidos na crença numa salvação milagrosa que pouparia os humildes habitantes do sertão dos flagelos do clima e da exclusão econômica e social.
Fazendeiros e comerciantes da região, unindo-se a padres, iniciaram um forte grupo de pressão junto à República recém-instaurada, pedindo que fossem tomadas providências contra Antônio Conselheiro e seus seguidores. Criaram-se rumores de que Canudos se armava para atacar cidades vizinhas e partir em direção à capital para depor o governo republicano e reinstalar a Monarquia.
Apesar de não haver nenhuma prova para estes rumores, o Exército foi mandado para Canudos. Três expedições militares contra Canudos saíram derrotadas, o que apavorou a opinião pública, que acabou exigindo a destruição do arraial, dando legitimidade ao massacre de até vinte mil sertanejos. Além disso, estima-se que seis mil militares tenham morrido. A guerra terminou com a destruição total de Canudos, a degola de muitos prisioneiros de guerra, e o incêndio e destruição de todas as casas do arraial. A ordem de não ficar pedra sobre pedra foi cumprida.
Recebidos novamente na portaria do Parque, o solícito vigilante Tudi pegou uma pequena motocicleta e nos conduziu através da aridez do solo aos principais locais de referência do arraial e das batalhas. Nossas motos levantavam poeira nas veredas de barro vermelho que cortava a mata ressecada da áspera caatinga.
Pisar naquele chão, outrora banhado por sangue brasileiro em batalhas fraticidas, me levou a pensar na estupidez daquela guerra. Imaginei o troar dos canhões, o gemido dos degolados, os gritos de guerra, o sussurro das novenas e cânticos daquela gente miserável cheia de inútil fé. Não foi sem incômoda emoção que caminhei por entre aquelas árvores, retorcidas como braços em súplica aos céus, entre pedras que ocultavam ossadas humanas. Ao ver as placas indicativas imaginei em cada uma delas os movimentos das pessoas, o casario de pau a pique, os esconderijos dos jagunços combatentes e a formação de guerra dos militares. É um passeio triste para quem conhece um pouco daquela história.
Escreve Euclides da Cunha:
Não havia errar o alvo desmedido. Viram-se os efeitos das primeiras balas em vários pontos; explodindo dentro dos casebres e estraçoando-os, e enterroando-os; atirando pelos ares tetos de argilas e vigamentos em estilhas; pulverizando as paredes de adobes; ateando os primeiros incêndios… Em breve sobre a casaria fulminada se enovelou e se adensou,compacta, uma nuvem de poeira e de fumo, cobrindo-a. Não a divisou mais o resto dos combatentes. O troar solene da artilharia estrugia os ares; reboava longamente por todo o âmbito daqueles ermos, na assonância ensurdecedora dos ecos refluídos das montanhas…
Fotografamos bastante o lugar. Com o baixo nível de água do Cocorobó, era possível ver o arco da torre da igreja matriz da cidade submersa. Com o sol a se aproximar do horizonte os tons ficaram ainda mais fortes. Registramos a cores, as silhuetas e as sombras até o sol desaparecer levando consigo seu pincel de luz multicolorida.Não há manhãs que se comparem às de Canudos; nem as manhãs sul-mineiras nem as manhãs douradas do planalto central se equiparam às que aqui se expandem num firmamento puríssimo, com irradiações fantásticas de apoteose… Assim Euclides da Cunha descreveu o amanhecer local em 1897. Em 2012 eu digo que Euclides descreveria o entardecer em Canudos de modo parecido.
Era noite criada quando retornamos à cidade. Esperei encontrar uma Canudos parada no tempo. Enganei-me. A Nova Canudos é como toda e qualquer cidade pequena do interior, barulhenta, com muitas pequenas motocicletas circulando, as moças vestindo roupas ousadas tal com se vê na televisão, bares e pizzarias nas esquinas e, nessa época de eleição municipal, ruidosos carros e caminhões de som. Não percebi uma identidade local, apenas um discreto orgulho do trágico passado. Acho que a Guerra deixou poucos sobreviventes…
Retiro-me mentalmente do cenário da guerra com esta reflexão de Vargas Llosa: “Graças à pregação do Conselheiro, (os sertanejos) começaram a sentir-se orgulhosos de sua maneira de ser. O que eles defendiam era algo que podiam entender. A república eles não podiam entender. Como lhes seria possível compreender essas abstrações positivistas? Já a fé, essa fé fanática que lhes haviam inculcado havia séculos, isso entendiam perfeitamente bem.”
Observando o movimento da cidade, tomamos cervejas e comemos uma pizza na rua principal. Um caminhão cheio de eleitores pululantes passava em buzinaço a todo momento. Incomodava um pouco. Incomodou muito foi uma confusão por perto que gerou três tiros de revólver. Pagamos a conta e fomos descansar.
Dia 17/09/2012 Segunda Feira
Tomamos talvez o mais saboroso, farto e diversificado café da manhã da viagem. Acertamos as contas ( R$70,00 a diária), agradecemos a acolhida, lubrificamos as correntes da motos vermelhas de pó, encilhamos a bagagem e voltamos para a estrada.
Havíamos combinado de passar em Canudos Velha, lugarejo que restou da inundação da outrora Canudos, onde um senhor bem avançado na idade, o Sr Manoel Travessa, mantém um pequeno museu de objetos da antiga Canudos e da guerra.. Reflexões intracapacete me lembraram que isso nos faria rodar à noite por cerca de 100/150km antes de chegar a Fortaleza. Como eu pretendia seguir caminho diferente do PW uns 140km antes da capital para ir para a Praia de Peroba passar os dias restantes de férias, achei por bem deixar para outra oportunidade a visita ao Seu Manoel Travessa. Achei mais leal não deixar meu grande companheiro de estrada rodar sozinho à noite num trecho complicado da estrada. Na entrada de Canudos Velha gesticulei para o PW avisando que seguiríamos em frente.
Em todo esse trecho da BR 116 fomos ladeados por cabritos no acostamento. Observando a carga de muitos caminhões que ultrapassei entendi o motivo. Com a falta de água assolando o cultivo de grãos em parte do Nordeste, o governo pernambucano está importando grande quantidade de milho para alimentar os rebanhos. Parte desse milho cai dos caminhões graneleiros vai para o acostamento, alimentar os cabritos.
Despedindo-se da Bahia, paramos em Ibó para descanso e abastecimento das motos. 18,47lm/litro foi o consumo da minha moto. Em seguida cruzamos o São Francisco através da ponte que liga a Bahia a Pernambuco. No grande trevo logo à frente, além do aparente abandono do posto da PRF, havia uma imensa e curva fila de caminhões parados. Alguém achou por bem fazer do trevo um posto fiscal.
Entramos em solo cearense com buzinadas e toque de botas no chão. Tichau lombadas caroçudas na pista! Agora só civilizados fotosensores e a placa da minha moto cada vez mais suja… Com pouco movimento na estrada e preocupados em não rodar à noite mantivemos neste dia uma tocada mais forte, acima dos 120km/h.
Engraçado, na ida, a BR116 no Ceará parecia bem melhor que agora, na volta, cuja pista está mais, digamos, encaroçada. Só encontro explicação no fato de sermos um estado importador. Os caminhões chegam carregados e retornam vazios.
Com um calor de rachar, paramos em Cachoeira dos Índios, na Paraíba, numa pequena alça de estrada que passa pelo estado vizinho. Abastecemos as motos e nos hidratamos com água e café. O consumo de gasolina da minha moto no trecho foi de 17,5km/litro.
Com mais 136km rodados, um pouco cansados por conta do forte e incômodo calor, paramos em Jaguaribe e aproveitamos para abastecer e tomarmos sorvete. Mostrando que uma tocada forte se reflete no consumo, a V-Strom quase repetiu a marca anterior, fazendo agora 17,9km/litro.
Fizemos uma rápida parada no acostamento para o PW registrar a marca 7777 no odômetro da GS dele. É que sete é o número cabalístico dos W.
Passamos por Russas e fiquei atento à entrada para Jaguaruana, onde eu deveria entrar para cortar caminho rumo a Peroba, onde Marta me aguardava.
Era quase três horas da tarde quando chegamos ao entroncamento para Jaguaruana. Paramos. Fiz algumas recomendações ao PW que a partir dali pilotaria solo, para o trecho a partir de Boqueirão do Cesário e principalmente entre o Triângulo de Quixadá e Chorozinho, que considero o mais perigoso da BR 116 no Ceará. Recomendações desnecessárias depois do que rodamos na Rio-Bahia, BR 262 e 101 tanto de dia como à noite e tanto com sol como com chuva . A essa altura PW já deve ser PHD em estradas para meninos grandes. Fizemos uma foto e nos abraçamos despedindo-se de tantos dias juntos. Faltava 150km para Fortaleza.
Segui, doravante solitário, por uma desconhecida estrada de asfalto pedregoso e quase sem movimento que cruzava, sinuosa, a região do Baixo Jaguaribe, entre plantações de caju e fazendas de camarão.
Cheguei a Aracati por volta das quatro e meia e abasteci a moto em posto já bem conhecido. Eita que a moto foi beberrona deste o último abastecimento: 16,75km/litro! Coisa estranha; os dois piores consumos da viagem foram obtidos com abastecimentos feitos na mesma região, Médio Jaguaribe. Será que o distribuidor de gasolina para Russas e Jaguaribe é o mesmo? A desconfiança na cristandade do combustível aumenta quando sabe-se que aquela estrada não tem grande movimento e é praticamente plana.
Liguei para Marta para avisar que em meia hora estaria em casa, na Peroba. Como ela estava começando uma caminhada nas dunas de Ponta Grossa, imaginando que eu chegaria bem mais tarde, combinei que iria, então, para a Barraca do Sidrak, na mesma Ponta Grossa.
Torci o cabo do acelerador na BR 304, andando acima dos 130km/h, ficando cada vez mais distante de Fortaleza. Não demorou e saí da BR entrando à esquerda para Icapuí e logo entrei à esquerda novamente para Redonda e cinco quilômetros a mais entrei novamente à esquerda para Ponta Grossa.
Era cinco da tarde quando pedi a primeira geladíssima cerveja na Barraca do Sidrak. Brindei o chegada de viagem com meus amigos pescadores. Quando Marta chegou da caminhada nem sabia mais quantas cervas já havíamos tomado…
Considerações finais
Viajamos durante 11 dias sem sustos, imprevistos ou desencontros. Foi muito bom rever os amigos onde foi possível e as novas amizades que engrandeceram cada um de nós. Contamos com apoio dos Brazil Riders e m@adianos com dicas sobre estradas e passeios. Mesmo sem termos qualquer imprevisto na viagem, em caso de necessidade, sabíamos que poderíamos contar com BRs em cada lugar que passamos. Sem esquecer a presença especial do Davi, de Cachoeiro do Itapemirim, em Alto Caparaó.
Previmos despesas entre 3 000,00 a 3500,00 reais. No entanto, creio que a conta não chegou a R$2 500,00 por pessoa, incluindo tudo.
Como sempre mantenho rotineiramente a motocicleta bem cuidada, prepará-la para viagem não exigiu muita coisa: Os pneus Michelim Anakee 2 já estavam com 17 mil km rodados e resolvi trocá-los duas semanas antes da partida, pois mesmo ainda podendo rodar 2 ou 3 mil km dentro da faixa de segurança, não se começa uma viagem de mais de 5 mil km com pneus perto do fim. Mantive os bons e duráveis Anakee. Com 1 mês de antecipação troquei o rolamento da mesa, que apresentava um calo. A troca de óleo do motor e respectivo filtro foi feita com três dias de antecedência. Para evitar surprêsas na estrada, é muito importante fazer tudo que for necessário na moto com certa antecedência. E depois rodar com a máquina para se certificar que tudo ficou de acordo com o previsto.
Ah, lembram que eu não limpava os salpicos de óleo da corrente que iam sujando a placa da moto? Achava era bom que ficasse cada vez mais suja. Pois é… Dia 17 de outubro recebi em casa, vejam só, uma lembrancinha de Eunápolis, via DENIT multa por trafegar a 56km/h quando o permitido, sabe-se lá por quem, era 40km/h… fruto da ótima sinalização da estrada. Devo ter colocado muitas vidas em risco com tamanho excesso de velocidade… Conclui, portanto, que a placa da minha moto não estava tão sujinha assim quanto eu pensava…
Total rodado – 5 315km
Quantidade de gasolina – 258,49 litros
Despesa total com combustível – R$ 741,46
Preço médio da gasolina – R$ 2,87
Consumo médio da V-Strom 19,49km/litro
Abrilhantaram a viagem as agradabilíssimas companhias do Alexandre Daher e do grande amigo e estradeiro de longas pernadas Joarez Dallago.
Faço um agradecimento especial ao Paulo Walraven, o PW. Pelo seu entusiasmo desde o primeiro momento em que a ideia da viagem foi concebida, pelo desenho e confecção de camisetas e adesivos alusivos à viagem, por sua lealdade incondicional a todos em todos os momentos e, por fim, por ter estado sempre junto na realização de todo o roteiro planejado.
Inté a próxima!
Notas bibliográficas:
Ricardo Setti (Conversas com Vargas Llosa)
Euclides da Cunha (Os Sertões)
IBGE (www.ibge.gov.br/cidadesat)
Fiocruz (www.invivo.fiocruz.br)