AVENTURISMO – A Missa do Vaqueiro: O cantor, o padre, o mito e a volta da pega do boi!
“Não respeitava favela
Serra, facheiro, cipó
Sua calça era a perneira
Seu gibão o paletó
Fosse a cavalo ou a pé
Era uma coisa só”
Cantoria de Pedro e João Bandeira de Caldas
Serrita, Pernambuco. O galo canta. Ainda é madrugada. Um homem levanta-se da cama, pega uma camisa branca, a calça de couro, veste a perneira, coloca o guarda-peito, pega o gibão e segue até fora da casa para lavar o rosto. Encilha o cavalo, toma um gole de café enquanto arruma a bolsa onde levará um pedaço de bode seco, uma rapadura, farinha branca e a cabaça com água. É mais um dia de trabalho para Raimundo, que de tão destemido carrega o apelido de ‘Doido’.
Raimundo ficou afamado pela coragem ao capturar, ou “pegar”, o boi no meio do mato. Ele também é conhecido por saber, no meio da caatinga fechada, onde descansava e bebia cada um dos animais que ele tomava conta. É admirado pelo seu aboio afinado, daqueles vibrantes, cantado “com o dedo no ouvido”
Montado no cavalo vai ao encontro de Miguel, outro vaqueiro, e juntos vão começar a pega do boi.
O que Raimundo Jacó não sabe é que no ano seco de 1952, o dia 8 de Julho dará seu derradeiro suspiro neste mundo. Raimundo Jacó será assassinado.
A Pega de boi acontece no meio da vegetação catingueira, com os vaqueiros encourados se embrenhando no mato em cima dos seus cavalos ligeiros para pegar o boi. Enfrentam espinhos de juremas e touceiras de xique-xique. Qualquer acidente pode ser fatal. Segundo os sertanejos, os cavalos chegam a alcançar 60 km/h na velocidade máxima da corrida no meio da vegetação ressequida e pontiaguda. A Pega de boi no mato é uma tradição que remonta os primeiros tempos da ocupação do sertão nordestino pelos brancos europeus. Naquela época não existia o arame farpado, os animais eram criados soltos. A ideia era deixar os animais à vontade de para buscarem a alimentação. Em determinadas épocas os vaqueiros encourados adentravam a caatinga para realizar a pega do boi. Sempre entoando seus cantos, seus aboios no meio das “pegas”.
Voltemos ao ano seco de 1952. Os dois vaqueiros, Raimundo e Miguel, saíram pelo sertão em busca de uma rês arisca que havia fugido e era famosa pelas suas astúcias. Miguel cuidava do gado da patroa e Raimundo da boiada do patrão.
Reza a lenda que Miguel ainda procurava a rês quando encontrou Raimundo sentado embaixo de uma árvore, com a rês amarrada, o cavalo preso, com o cachorro do lado e fumando calmamente um cigarrinho. Aquela imagem foi demais para Miguel que motivado pela inveja e pelo o ódio, na posse de uma pedra, abriu dois buracos na cabeça de Jacó.
Miguel volta para casa à noite e avisa que não ‘achou’ Raimundo Jacó. Logo as pessoas caíram no mato para encontrá-lo e Miguel foi junto.
Dois dias após seu desaparecimento, o cadáver de Jacó foi encontrado junto a um pé de imbaúba, em um lugar conhecido como sítio Lajes. À pouca distância do corpo estava amarrada a fugitiva garrota, o seu cavalo e, protegendo o cadáver dos urubus estava o seu fiel cachorro. No crânio do vaqueiro havia duas marcas de ferimentos e não muito distante do seu corpo acharam uma pedra com sangue. Todo o cenário apontava para um possível assassinato.
Ali enterraram Raimundo Jacó. O seu fiel cachorro acompanhou todo o enterro e depois que todos voltaram para as suas vidas o fiel companheiro resolveu ficar para morrer de sede e de fome, guardando o túmulo daquele que foi o seu maior amigo.
QUEM MATOU RAIMUNDO JACÓ?
Para a opinião pública e para a justiça local, Miguel Lopes surgiu como o mais provável suspeito da morte de Raimundo Jacó. Foi aberto um processo crime contra Miguel Lopes, que afirmava ser inocente.
Clarisbalte Figueiredo Sampaio, o Promotor Público da cidade, desistiu do processo contra Miguel Lopes. Logo o processo foi arquivado por falta de provas e a morte de Raimundo Jacó até hoje não foi esclarecida. Mais há algumas suspeitas e várias justificativas. Desde 1949 os Alencar e os Sampaio, as duas mais poderosas famílias da cidade de Exu (PE), mantinham uma luta ferrenha entre seus membros. Miguel era então ligado a um dos clãs e por causa desta ligação ele não foi preso.
O PRIMO FAMOSO!
Apesar de não ter sobrenome poderoso, Raimundo tinha primo famoso. Era Luiz Gonzaga, Rei do Baião, filho de Januário, também músico do acordeão e consertador de sanfona. Luiz, então, decidiu cantar a morte do vaqueiro pelas quebradas do sertão. O ano era 1963, um dos períodos mais difíceis na carreira de Luiz Gonzaga, devido à concorrência com as músicas modernas e o rock vindos do exterior. Naquele ano Luiz Gonzaga lançou pela empresa fonográfica RCA, o Long Play, ou “LP”, intitulado “Pisa no Pilão – Festa do Milho”.
O vinil tinha um acervo musical direcionado para as festas juninas e trazia músicas como “Festa do Milho”, “Festa de São João” e “Pisa no Pilão”.
Mas foi a quarta faixa do lado “A” do LP que reacendeu a saga de Jacó. Nomeada “A Morte do Vaqueiro”, foi a mais importante faixa deste disco de Luiz Gonzaga. A música foi composta em uma única tarde na casa de Nelson Barbalho, jornalista, historiador, pesquisador, lexicógrafo, compositor musical e amigo de Gonzaga.
Como ocorre no Nordeste no local da morte onde as pessoas assassinadas de forma trágica eram enterradas, logo a cruz que marcava o túmulo de Raimundo Jacó passou a receber várias pessoas, principalmente vaqueiros. Estes, além de deixarem fitas e velas, rezavam e pediam ao falecido que intercedesse por eles.
Já tinham o vaqueiro e a música, faltava a missa e para fazer a missa precisavam de um padre, preferencialmente vaqueiro. E eles acharam.
O PADRE VAQUEIRO
João Câncio dos Santos nasceu em Petrolina, Pernambuco, em 21 de outubro de 1936 e seguiu sua vocação sacerdotal logo cedo. Estudou no seminário do Crato, depois foi para Salvador e João Pessoa, onde se formou padre em 1965.
Sua primeira paróquia foi em Serrita, onde iniciava seu trabalho pastoral com a consciência de que a religião e a fé estão presentes em todas as pessoas. Segundo material produzido pela Fundação Padre João Câncio, o pároco não impôs a comunidade a sua oratória de seminário, mas buscou aproximar-se da comunidade, vivenciando e praticando seus hábitos, com o propósito de entendê-los melhor.
Padre João Câncio e Luiz Gonzaga conheceram-se em uma vaquejada realizada em Exu, no verão de 1970, ano de forte seca e daí nasceu uma grande amizade. O padre Câncio adorava a música “A Morte do Vaqueiro”, que escutava no toca fitas de sua Ford Rural, enquanto seguia para alguma obrigação sacerdotal no meio do sertão.
E em meio à seca de 1970, durante as celebrações que ocorriam nas frentes de emergência, que proporcionava aos trabalhadores rurais alguma renda (mínima) em meio à calamidade climática, alguém comentou que “existia missa para todo tipo de gente, mas não havia para vaqueiros”. Logo foi sugerido que uma missa dessas poderia ocorrer no local onde Raimundo Jacó foi assassinado. Como o padre Câncio era um vaqueiro, gostava da música e conhecia Luiz Gonzaga, estava pavimentado o caminho para a Missa do Vaqueiro de Serrita.
FALTAVA DIVULGAR E DOCUMENTAR O FEITO? NÃO FALTOU NEM ISSO
Mas ainda faltava algo: a descoberta da missa e sua divulgação.
Em meio à missa simples e tradicional de 1971, com todos os vaqueiros encourados presentes, foram realizadas as tomadas cinematográficas para um documentário que seria chamado “A Missa do Vaqueiro”. O curta-metragem rodado em 16 mm, colorido, com 25 minutos de duração tinha a direção do baiano José Carlos Capinam (Além de letrista, poeta e escritor, Capinam é publicitário, jornalista e médico!) e do carioca José Carlos Avellar (consultor dos festivais internacionais de cinema de Berlim (desde 1980), de San Sebastián (desde 1993) e de Montreal (desde 1995). Desde 2006 é também curador (com Sérgio Sanz) do Festival de Gramado e já publicou vários livros de ensaios sobre cinema) que mais tarde ficariam conhecidos também como membros do movimento Tropicalista junto com Gilberto Gil, Caetano e outros nomes consagrados.
O filme ganhou o mundo e muitos prêmios e A Morte do Vaqueiro deixou de ser apenas o assassinato de um anônimo para ser um dos maiores eventos culturais que se tem notícia no Brasil e no mundo. Luiz e o padre Câncio foram ao Rio de Janeiro e entrevistados pelo O Jornal e o Jornal do Brasil, em 1972. Anos depois o padre Câncio deixa a batina para casar-se.
O PRIMO, O PADRE E O MITO!
Em uma das cenas do filme Luiz Gonzaga, de sanfona em punho, cantando o sermão da missa. A pesquisadora francesa Dominique Dreyfus informa em seu livro, “A vida do viajante: A saga de Luiz Gonzaga”, página 248, que Gonzaga participou ativamente dos primeiros anos da Missa do vaqueiro de Serrita e apoiou financeiramente o evento até 1974.
Não é possível precisar a data, mas a Missa do Vaqueiro deve ter ocorrido no terceiro domingo de julho de 1971, que seria 18 de julho. Nos anos seguintes seria nesta data que normalmente o evento passaria a ocorrer.
Do suposto assassino de Raimundo Jacó ‘O Doido’, a última informação foi publicada em 27 de agosto de 1996, no “Diário de Pernambuco”, de Recife, traz a informação que José Miguel Lopes, ainda vivo a época da reportagem, jamais participou da celebração famosa, vivendo praticamente recluso e anônimo no distrito de Rancharia.
A missa do vaqueiro, realizada no município de Serrita, a 536 km do Recife, surgiu em 1971 como uma homenagem ao vaqueiro Raimundo Jacó, sendo considerada atualmente uma das maiores e mais importantes festas do sertão nordestino.
Esse evento atrai anualmente cerca de 50 mil visitantes e é promovido pela Fundação João Câncio, em parceria com a Prefeitura Municipal de Serrita e a Associação de Vaqueiros de Pega de Boi na Caatinga do Alto Sertão de Pernambuco (Apega).
A VOLTA DA PEGA DO BOI
A pega do boi voltou com grande força depois de quase ter sido esquecida por conta do advento da vaquejada moderna. Na pega de boi no mato os bichos são soltos em uma área de caatinga preservada e quem conseguir recuperar os animais é então declarado o vencedor, ou vencedores, e no término do evento são premiados. A premiação é feita com troféus e brindes (animais, selas, arreios), normalmente doados pelos parceiros que organizam estes eventos. A Pega de boi no mato é uma forma de resgatar a cultura do vaqueiro, é uma homenagem a todos os vaqueiros do nosso Nordeste, que amam lidar com o gado, viver livre, sendo único dono do seu destino, mostrando agilidade e valentia. Mas é na Missa do Vaqueiro que eles celebram com queijo e rapadura, a fé e a memória de Raimundo Jacó.
É nesse espírito, o daqueles que desejam sempre viverem livres, sendo único dono do seu destino, companheirismo, irmandade e mostrando agilidade e valentia que nós motociclistas nos identificamos como autênticos descendentes desses guerreiros do sol.
SERVIÇO:
Saiba mais, onde ficar e a data da Missa do Vaqueiro.
Acesse – http://fundacaopadrejoaocancio.com.br/missa_do_vaqueiro.html
Agradecimento especial – Eduardo Macedo – cordelista e xilógrafo – facebook.com/poetaeduardomacedo
HOTEL & GASTRONOMIA – SERRITA
BODE NOVO GÁS – 87 8118-6061
RESTAURANTE ALTAS HORAS-87 8104 -7427
SORVETERIA E LACHONETE SABOR DE MEL- 87 8104-9566
POUSADA SERTANEJA E POSTO RD- 87 3882-1259
POUSADA BRILHO DO SOL- 87 3882-1236
PANIFICADORA NOSSA SENHORA APARECIDA- 87 3882-1312
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