Estação Ferroviária de Iguatu: O fim de linha onde tudo começou.
Um som diferente ecoou nos ares da cidade. O chão tremia como nunca antes acontecerá. Todos correm para fora de suas casas. Dona Iaiá, uma senhora de idade avançada, descendente de escravos, também estava no meio da correria que tomou conta da cidade para saber o que estava acontecendo.
Era a ‘Maria-Fumaça’ que chegava pela primeira vez em Iguatu. A fumaça e o apito aceleraram corações, arregalaram olhos, arrepiaram as peles e paralisaram muitas pessoas num misto de medo e êxtase.
Muitos se ajoelharam e outros como Dona Iaiá correram para abraçar o trem. Afoita e em um quase transe por ver uma máquina tão grande e que tinha a força de mil cavalos Dona Iaiá não se conteve e beijou a máquina ainda quente queimando-lhe os lábios que ficaram marcados para sempre como o dia da chegada da locomotiva. Ao quinto dia de novembro de 1910, Dona Iaiá sentiu na pele todo o calor do veículo que traria o progresso à Iguatu.
As estradas de ferro no Ceará tiveram um papel primordial para levar o progresso e o desenvolvimento às cidades. O estado quase não tinha estradas e para ir de Iguatu até Fortaleza, no início do Século XX, levavam-se semanas em uma difícil e torturante viagem.
Com a chegada da estrada de ferro em Iguatu, em 05 de novembro de 1910, tudo mudaria para sempre. Foi a ‘Maria-Fumaça’ que trouxe o progresso para a região. Por ela passaram por Iguatu presidentes de províncias e dois Presidentes do Brasil – Washington Luis (em 1926) e Getúlio Vargas (em 1933).
O ‘BITOLA’ e a ‘Rapariga Velha Cansada’!
Pela RVC – Rede Viação Cearense, arrendada desde 1909 a firma inglesa South American Railway Construction Company Ltd. vinham o coronel e o soldado, o pobre e o rico, o padre e o bispo, a polícia e o ladrão. Era o meio de transporte mais democrático de todos e encantava inclusive aos mais debochados, tipo o advogado e romancista Quintino Cunha – dono de expressões até hoje são usadas pelo cearense como o “Queima raparigal”. Tal expressão se originou quando Quintino, no início do Século XX, completamente de porre, depois de uma noite de boemia, vinha pela Rua Senador Pompeu, centro de Fortaleza e viu um cabaré pegando fogo e as meretrizes saltando do primeiro andar do sobrado. Naquele momento ele disse –“Queima, raparigal!” Essa expressão ainda hoje é utilizada no mundo inteiro por cearenses. E foi nesse caminho que Quintino batizou a lenta ‘Maria-Fumaça’ da RVC – Rede Viação Cearense de ‘Rapariga Velha Cansada’.
Uma palavra que serve de adjetivo para designar um ser efeminado ou pouco ‘macho’ também teve origem na estrada de ferro. Os ingleses dominavam a tecnologia e ter um súdito do Reino Unido no Ceará cuidando disso era fácil. Acontece que o sotaque dele não permitia falar corretamente a palavra ‘bitola’. Como os ingleses tinham hábitos refinados, gestos leves e delicados os cearenses da época acostumados à rudeza e brutalidade logo acharam aquilo esquisito e batizaram os efeminados ou pouco machos pela forma como se diz ‘bitola’ com sotaque inglês – ou seja: “baitola”. O adjetivo também é usado como um tratamento carinhoso entre amigos e tem o mesmo significado de ‘fí-duma-égua’ ou ‘corno-véi’. Agora, só diga isso se o cara for muito seu amigo, se não for a missiva será tida como insulto e aí a ‘peixeira come o couro do infeliz descuidado de língua frouxa’.
A Hora do Trem
As pessoas faziam tudo em função da ‘hora do trem’. Era uma novidade na cidade saber quem chegou, quem partiu e até mesmo quem estava lá para receber ou se despedir. Mas a ‘Maria-Fumaça’ era lenta e demorava dois dias para chegar a Fortaleza. Porém era melhor e menos cansativa que viajar por semanas em carroças ou lombo de jumentos. Era um luxo. Tinha até vagão de primeira classe e restaurante.
Hoje vamos à Fortaleza, partindo de Iguatu, por estradas asfaltadas, cruzando ou margeando a velha ferrovia e levamos apenas 4 horas de moto. Viajar de trem naquela época era um evento semelhante ao glamour de quando os aviões começaram a transportar passageiros. A rota para Fortaleza passava por cidades como Senador Pompeu, Quixadá e Baturité.
Foi a estrada de ferro que trouxe a tecnologia para a cidade, a fruta desconhecida como as uvas plantadas em Baturité e tornou a fazenda ‘Não Me Deixes’ da escritora Raquel de Queiroz famosa, pois os trilhos cruzavam suas terras, em Quixadá, e via-se a sua casa ao longe e a Pedra da Galinha-Choca. Para Iguatu vieram máquinas para beneficiar o algodão e muitas outras que fizeram aumentar a produção. Hotéis foram construídos e dentre eles está o Exposição Hotel do meu amigo motociclista Ricardo Quinderé, o qual fica defronte a Estação Iguatu. Daqui partiam a carne que abastecia Fortaleza e óleo retirado da semente de algodão que servia para cozinhar. Aqui se fornecia o fio da veste, a carne do rango e o óleo de cozinha.
A cidade de Iguatu era o fim da linha e tudo começava ou terminava aqui, pois a estação do Crato ainda não estava pronta. Uma ponte foi feita pelos ingleses, fabricada em Liverpool, para atravessar o Rio Jaguaribe por um vão de 160 metros e que foi inaugurada em 25 de agosto de 1915. A Inglaterra dominava esta tecnologia desde 1825 quando inaugurou a primeira ferrovia do mundo. No Brasil a primeira linha férrea foi patrocinada pelo Barão de Mauá em 1854.
Junto com Iguatu foram inauguradas as estações de Lages (hoje município de Acopiara), Suassurana, Quincoé e depois José de Alencar. Só em 1926 que Juazeiro teria inaugurada a sua estação ferroviária. Até na miscigenação a estrada de ferro interferiu. Por conta de ter muitos operários a cidade passou a ter mais homens que mulheres. Para casar seus filhos muitos pais os mandaram para a Serra Grande buscar esposas, pois lá era lugar de mulheres bonitas descendentes de europeus. Os rapazes arrumavam as namoradas e se casavam e em seguida vinham pra Iguatu. Daí o fato de existir nesta cidade uma parcela significante de pessoas de pele e olhos claros.
Neste meio tempo muitos fatos históricos aconteceram na Estação Iguatu. Vou destacar dois deles que considero muito importantes. Em apenas dois anos esta cidade viu uma revolução derrubar um governador e um trem ser chamado de ‘esperança’ para milhares de retirantes da ‘Seca do 15’.
A Sedição de Juazeiro – A Guerra do Padre Cícero
A Sedição de Juazeiro ou a Revolução de 1914 foi algo que merece um filme pelo seu ineditismo e coragem de um padre ao desafiar o Presidente da Província do Ceará.
Franco Rabelo, presidente da província do Ceará, resolveu bater de frente com Pe. Cícero e alguns coronéis. Levou a pior. Aqui em Iguatu 250 soldados foram postos pra correr quando da Sedição de Juazeiro que contou com apoio de jagunços e cangaceiros de vários bandos em apoio a Pe. Cícero, dentre eles Pedro Silvino, Floro Bartolomeu e José Borba. Iguatu era o fim da linha onde as tropas desceram e foi também o começo do fim para Franco Rabelo.
J. da Penha decidiu deixar Iguatu e lutar em outro lugar chamado Ibicuã por conta do terreno ser desfavorável em Iguatu devido às muitas planícies. Mas não deu certo. A tática de guerrilha dominada pelos cangaceiros (chamados aqui de Guerreiros do Sol – nome do nosso motoclube) foi mais eficiente.
Uma legião de milhares de romeiros derrotou por várias vezes o Exército da União matando Zezinho e J. Da Penha, seu capitão. Meu avô seu Zito (pai de Dona Catarina Magalhães e Antonio Nobre Magalhães), ainda jovem, lutou ao lado de Pe. Cícero quando tentaram tomar Juazeiro. Trouxeram até canhão importado da China e que na hora ‘H’ não funcionou. Foi uma surra que só parou na cidade de Miguel Calmon hoje Ibicuã.
Quando as forças juazeirenses chegaram à Fortaleza, uma esquadra da Marinha impôs um bloqueio marítimo na orla fortalezense. Cercado, Franco Rabelo não teve como reagir e nem como fugir e acabou deposto.
Hermes da Fonseca nomeou interinamente Fernando Setembrino de Carvalho, enquanto novas eleições eram convocadas. Liberato Barroso foi eleito governador e Padre Cícero vice novamente. Isto custou a Pe. Cícero sua excomunhão, mas de pouco serviu, pois só aumentou seu poder e sua fama. Hoje Padim Ciço é santo na boca do povo e ai quem se atreva a falar mal dele na região do Cariri – é arrumar entrevero certo e uma quase morte. Ele é santo e pronto, não se discute! Para ter uma ideia da força dele, quando Iguatu foi invadido pelas suas forças os romeiros descobriram o assassino de um beato do Padim e mataram o cara na hora!
A Seca do 15 e o Trem da Esperança
Um ano depois a Estação de Iguatu era o ponto de partida para o ‘Trem da Esperança’. Daqui partiram milhares de retirantes esfomeados e esquálidos vítimas da pior seca de todos os tempos – A Seca de 15.
O trem levava os retirantes e a primeira leva de 300 foi recebida pelo Presidente da Província do Ceará Benjamim Barroso que os alojou no Passeio Público. Acontece que Fortaleza naquela época era considerada uma Paris do Nordeste e não podia ser maculada por pestes (varíola, por exemplo) e com esfomeados e pedintes andando pela cidade. Tempos depois tiveram a péssima ideia de criar os tais campos de concentração que acabaram matando milhares de cearenses.
A memória recente dos cearenses e do governo em razão da epidemia de varíola fez com que Rodolfo Teófilo fosse novamente chamado para vacinar os retirantes e afastar a possibilidade de uma nova epidemia. Aqui vale destacar a história de um herói cearense e benfeitor da humanidade. Sozinho, Rodolfo Teófilo – criador da cajuína – e sem qualquer ajuda do governo do estado fabricava e combatia a varíola até erradicá-la completamente em 1900. Para vacinar era preciso furar as pessoas com injeção e isso era outro drama, muitos preferiram correr risco de morte a serem furados. Vacinou o Ceará todo e tudo isso sem nenhuma ajuda do governo que mais atrapalhava ao promover uma campanha pública para difamá-lo. Mesmo assim ele foi até o fim e o resultado disso foi que outro governador acabou caindo.
Iguatu era a cidade que dava o primeiro atendimento aos flagelados e com o tempo as coisas foram ficando difíceis até que o governo resolveu ajudar. Muitas vidas foram salvas pela ‘Maria-Fumaça’ que décadas depois seria substituída pelas locomotivas a diesel.
Em 12 de dezembro de 1988 a Estação de Iguatu levou o último vagão de passageiros. Hoje transporta apenas carga e combustível e cada dia é mais raro a sua passagem. Do que sobrou daquele tempo, restam a lembrança e a gratidão de ter sido por ela que Iguatu se tornou a maior cidade da Região Centro-Sul do Estado do Ceará. Uma locomotiva ‘Maria-Fumaça’ foi adquirida pela prefeitura, por ocasião do seu Centenário em 2010, para ser colocada em uma praça da cidade para marcar uma época onde aqui era a última ou a primeira estação.
No Distrito de Alencar distante 26 km de Iguatu, a população derrubou a estação por medo que a RFFSA tomasse as casas deles pois não poderiam mexer em nada que estivesse em volta. Um mal-entendido transformou a antiga estação que embarcava até boi em uma quadra de esportes meia-boca.
No Distrito de Várzea da Conceição, distante 22 km da cidade do Cedro aconteceu o contrário. Um vereador local comprou o terreno onde está a estação de trem, mas não deixou derrubar. Ela foi transformada em bar e o bar salvou da demolição. Podemos afirmar que, neste caso, o álcool preserva.
No Cedro a cidade construiu um museu fechado em na Praça dos Ferroviários onde existe locomotiva em precário estado de conservação. Em Iguatu a estação ainda está de pé. Porém parte dela está transformada em pequenas bodegas e quiosques para emissão de passagens para pessoas que utilizam topics.
Não foi á toa que este foi o lugar escolhido para realizar os shows e o evento IGUATU MOTO FEST 2013. Mais uma vez na história de Iguatu o chão irá tremer, mas desta feita não mais pela monstruosa ‘Maria-Fumaça’ de mil cavalos de Dona Iaiá e sim pelo roncar de motores vigorosos e cheios de um sentimento de liberdade. O mesmo sentimento que fez desta cidade um capítulo importante na história do Brasil.
Onde se hospedar: Havenna Hotel – Av. Mal Castelo Branco, Nº 1222
Bairro: Esplanada – 88 3581-2488 – Iguatu – Ceará
http://www.havennahotel.com.br/havennahotel/
APOIO CULTURAL – FAB Energético da Foverer (Representante Forever Iguatu: [email protected]), Make Safe – alarmes presenciais, Icamotos e Posto Icavel.
Fonte: A Estrada de Ferro de Iguatu de José Hílton Lima Verde Montenegro. 2010. Editora Expressão.
Fotos: Jan Messias, Samuel Gurgel
NOTA DOS AUTORES – Certa vez perguntaram a mim por que eu e Jan Messias saíamos por aí em busca de histórias e não apenas de fotografias. Respondi que somos ‘caçadores de histórias’ e não de paisagens. Em um carro a paisagem já está emoldurada e isolada das pessoas e você acaba deixando de descobrir algo interessante.
Eu sempre me lembro do filme Ratatouille – onde o restaurante era o que menos importava – a história mais fantástica estava lá na cozinha e não no salão. A comida pode ser boa, mas se você quiser pode descobrir a história de quem a fez e talvez degustar esta história seja mais saboroso que a mais doce sobremesa.
Gostamos de descobrir pessoas e lugares são feitos por gente. O porquê de ir de moto foi a próxima pergunta. Respondi que numa moto você está na história, sente o clima, o cheiro e as pessoas se aproximam mais facilmente de você. É uma curiosidade de ambos os lados. Nós querendo saber sobre eles e eles sobre nós e assim a conversa rola e conhecemos pessoas incríveis, descobrimos fatos que ninguém contou. Aí é puxar a câmera, abrir o caderno e ouvir. O resto é história.
É o que eu digo quando chego a um lugar para caçar histórias: SURPREENDA-ME! E assim seguimos caçando e contando histórias.